segunda-feira, 14 de setembro de 2015

CADERNOS BESTIAIS OU AS PALAVRAS A DESPEITO DAS PALAVRAS: UM LIVRO POLÍTICO



Ana Cristina Joaquim

Em 2015, numa aldeia situada ao sul do hemisfério sul, historicamente nomeada São Paulo de Piratininga,  habitavam algumas espécies de animais selvagens — grande quantidade delas, diziam alguns, já em vias de extinção — que, por estarem excessivamente atreladas aos tempos de antanho (em sua maioria, parentes mais ou menos próximos do caranguejo, mas que destes se distinguiam pela maior extensão corporal e por prescindirem da água para sua sobrevivência), não eram capazes de perceber que as palavras haviam ocupado suma importância nos modos todos de relação implicados na convivência interespécies. Utilizavam-se, portanto, de grunhidos muito pouco diversificados, que causavam grande irritação naqueles que a eles eram submetidos.

Neste mesmo ano de 2015, na aldeia que popularmente ficou conhecida como Paulicéia, Sampa ou Sampã (graças ao refinamento de três grandes retores do português brasileiro: Mário de Andrade, Caetano Veloso e José Celso Martinez Corrêa) — parte do estado federativo homônimo: o maior representante da lusofonia na América Latina (irônico?) — surge, entretanto, uma forma altamente elaborada de intervenção, que aponta justamente para a bestialidade envolvida no desprezo pelas palavras, ou, o que de alguma maneira é equivalente, no uso da palavra como mídia (meio ou mero veículo) de um conteúdo completamente destituído de valor para uma comunidade de proporções tais.

Refiro-me ao primeiro volume dos Cadernos bestiais, do poeta Claudio Daniel, publicado pela Editora Lumme nesta famigerada aldeia. Livro incisivamente atual que vem lembrar à comunidade selvática deste nosso estado paulista, que não apenas por meio de grunhidos nos expressamos.

A série de 10 poemas antimídia — um verdadeiro manifesto ético-político — oscila entre o trágico e o cômico da denúncia, como se entre um e outro houvesse apenas um direcionamento do agudo olhar. Sobre o  trágico, eis algumas das violentas panóplias: "(…) a morte engole manápulas/ e adensa paisagens-vértebras/ daqueles que não têm nome daqueles que/ não tem nome nenhum nada além/ de ninguém", "tateando entre os tufos da fome/ entre os húmus da usura tateando entre", "o estrondo mudo/ de uma pistola de 9mm"; "Nenhuma hipótese/ de lucidez/ nessa máquina/ para a produção do medo"; "fala para si, solipsista,/ como jargão/ de ofícios militares"; "unhas enegrecidas/ maxilares arrancados,/ miuçalha de carcaças". Sobre o cômico e o bufo expressionista: "O Apresentador do Grande Telejornal/ sofre de terríveis/ dores estomacais./ Tosse./ É impotente./ E peida muito."; "A Colunista do Grande Jornal Diário/ (…) folheia, na revista nova-iorquina,/ as últimas criações de Domenico Dolce/ e Stefano Gabbana (…)". Eis a mão impiedosa do poeta.

Há ainda um último poema da série antimídia, cuja epígrafe de Ionesco, "Quelle est ma langue?", coloca a questão poética no centro do interesse; questão com a qual o poeta debate-se no desenrolar dos ritmos e grunhidos que atravessam o poema: é como se  o poeta sussurrasse em meio a barulhos indistinguíveis, chamando a atenção dos Anônimos (título do poema que abre o livro), que devem buscar o poema num esforço de escuta contra toda a algaravia: "(Um miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de faisão"), "(Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístco?)", "(quem conhece um grande romancista na Lituânia?)", "letras que são bichos no escuro letras que/ são lepras de lorpas no escuro",  "(…) um poeta (tunisiano?) soletra a sub-reptícia/ sombra da vivissecção.", etc. Trata-se da metalinguagem muito apropriadamente usada com o propósito de ressaltar o duplo poder da palavra: arma e escudo contra a selvageria reinante, contra a linguagem inarticulada, em suma, a guerra contra os meios de comunicação.

Com fabulação de outras margens, uma série de breves poemas amorosos-sensuais, este primeiro volume dos Cadernos se encerra, de modo a oferecer ao leitor esta outra face da palavra, sua via de exaltação, um direcionamento possível.

Por fim, desde esta Paulicéia errática, Sampa ou Sampã melodiosa, proponho o movimento circular em direção à epígrafe (nunca em retrocesso, vale frisar), um atentado contra os caranguejos selvagens deste brejo ressequido: "Ao Desconhecido/ que sempre muda tudo".

(Resenha publicada originalmente na revista Germina.) 

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