quinta-feira, 2 de abril de 2015

CINCO POEMAS DE MÁRIO DE ANDRADE















O TROVADOR

Sentimentos em mim do asperamente
dos homens das primeiras eras...
As primaveras do sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...

Sou um tupi tangendo um alaúde!


O CORTEJO

Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bom giorno, caro."

Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

Estes homens de São Paulo,
Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
Parecem-me uns macacos, uns macacos.


A ESCALADA

( Maçonariamente.)

-Alcantilações!... Ladeiras sem conto!... 
Estas cruzes, estas crucificações da honra!... 
-Não há ponto final no morro das ambições.
As bebedeiras do vinho dos aplaudires... 
Champanhações... Cospe os fardos!

(São Paulo é trono.) – E as imensidões das escadarias!... 
-Queres te assentar no píncaro mais alto? Catedral?... 
-Estas cadeias da virtude!...
-Tripinga-te! (Os empurrões dos braços em segredo.)
Principiarás escravo, irás a Chico-Rei!

(Há fita de série no Colombo.
“O Empurrão na Escuridão”. Filme nacional.)
-Adeus lírios do Cubatão para os que andam sozinhos!
(Sono tre tustune per i ragazzini.)
-Estes mil quilos da crença!...
-Tripinga-te! Alcançarás o sólio e o sol sonante!
Cospe os fardos! Cospe os fardos!
Vê que facilidades as tais asas?...
(Toca a banda do Fieramosca: Pa, pa, pa, pum!
Toca a banda da polícia: Ta, ra, ta, tchim!)
És rei! Olha o rei nu!
Que é dos teus fardos, Hermes Pança?!

— Deixei-os lá nas margens das escadarias,
onde nas violetas corria o rio dos olhos de minha mãe...
— Sossega. És rico, és grandíssimo, és monarca!
Alguém agora t’os virá trazer.

(E ei-lo na curul do vesgo Olho-na-Treva.)


PAISAGEM N.1

Minha Londres das neblinas finas!
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.
Há neve de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio...
E a ironia das pernas das costureirinhas
parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!...
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos, 
um tralálá... A guarda cívica! Prisão!
Necessidade a prisão
para que haja civilização?
Meu coração sente-se muito triste... 
Enquanto o.cinzento das ruas arrepiadas 
dialoga um lamento com o vento...

Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozinho arrebitado
dá uma vontade de sorrir!

E sigo. E vou sentindo,
à inquieta alacridade da invernia, 
como um gosto de lágrimas na boca...


ODE AO BURGUÊS

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampeões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos:
e gemem sangues de alguns milreis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam o “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi! 
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano! 
“-Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
-Um colar... -Conto e quinhentos!!! 
Mas nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas venta!s oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...


P.S.: Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, me encanta pelas imagens brutalistas ("a grande boca de mil dentes", "o homem-curva! o homem-nádegas!", "Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!", "Cospe os fardos!"), pela sutileza do verso harmônico ("Traje de losangos... / Cinza e ouro... / Luz e bruma"), pelas metáforas inusitadas ("O vento é uma navalha nas mãos de um espanhol", “Minha alma corcunda como a avenida São João”), pela forte oralidade da dicção ("Eu insulto o burguês!"), pelo uso de palavras ásperas ("intermitentemente"), pelos neologismos (“sempiternamente”, “maçonariamente”, “algarismam”) pelo conteúdo político crítico ("se punham a pastar / rente ao palácio do senhor presidente!"), pelas evocações ("Oh minhas alucinações!", "Minha Londres das neblinas finas") e muitas outras coisas... é o melhor livro de poemas de Mário, em minha opinião.

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