quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

GERAÇÃO 90: UMA PLURALIDADE DE POÉTICAS POSSÍVEIS



1.1 A crise das vanguardas e a poesia da agoridade

            A poesia vive em conflito com o tempo e o pensamento e manifesta essa tensão na linguagem, construção estética que dialoga com a história, pessoal e coletiva, ao mesmo tempo em que afirma sua própria identidade como artefato artístico. Roman Jakobson, no livro Os problemas dos estudos literários e lingüísticos, de 1928, já apontou essa dupla face do texto literário: seu aspecto diacrônico, que se relaciona com o tempo e o espaço, e o aspecto sincrônico, que diz respeito aos elementos formais da escritura e sua relação com a tradição literária. Segundo o lingüista russo, “a obra poética deve na realidade definir-se como uma mensagem verbal na qual a função estética é a dominante”, embora também manifeste “estreita relação com a filosofia, com uma moral social etc.” (JAKOBSON, 1990: XIX). A poesia brasileira recente, e em especial aquela produzida na década de 1990, reflete de maneira enfática essa tensão com o tempo, o pensamento e a tradição criativa, e por esse motivo iniciaremos este ensaio com uma contextualização histórica, sem cairmos na ilusão de um determinismo mecanicista. Nosso objetivo é abordar as principais tendências do período (logo, é um estudo de poéticas, não de autores ou obras), mas antes será útil fazermos uma pequena reflexão sobre a mudança de paradigmas ocorrida a partir de 1989, que marcou o pensamento estético e cultural nas últimas décadas, inaugurando o momento que Haroldo de Campos chamou de “pós-utópico”. Com a queda do muro de Berlim e o posterior colapso da União Soviética, ocorreu um esvaziamento da busca de políticas sociais alternativas, o que levou Francis Fukuyama a declarar o “final da história”: a civilização teria alcançado seu estágio último com a democracia liberal e a economia de mercado globalizada, alimentada pela constante renovação tecnológica, como a automação industrial e a informática, pela especialização da produção e elevação das jornadas de trabalho. A concepção de “pós-história”, sem dúvida controversa, por desconsiderar realidades nacionais desiguais, alimenta a ideologia de um mundo unipolar, em que o Estado cede lugar ao capital e o espaço público se confunde com o privado, tornando anacrônica a idéia de utopia: não se trataria mais de mudar o mundo, mas de adaptar-se aos valores do mercado, considerados eternos e universais. Nesse contexto cultural, o conceito de vanguarda entrou em eclipse, já que o ideal de mudar a arte tem o seu correlato no ideal de mudar o mundo; sem utopia, não há vanguarda (e lembremos aqui o lema de André Breton: unir o “mudar a vida” de Rimbaud ao “mudar o mundo” de Marx, equação em que está implícito o “mudar a arte” de Lautréamont). A aceitação do projeto político hegemônico segue em linha paralela com o conformismo de certas linhas estéticas atuais: enquanto a ciência e a tecnologia buscam novos conhecimentos, técnicas e processos, necessários à própria dinâmica industrial, alguns poetas de tendência neoclássica escrevem hoje sonetos com rigorosa estrutura métrica e rímica, temas e metáforas tradicionais da poesia lírica e um vocabulário arcaizante, por vezes com uma retórica romântica; outros retomam o projeto modernista da década de 1930, com ênfase no discurso sintático linear, na linguagem prosaica, no humor ingênuo e na temática cotidiana, elementos já exauridos na década de 1970 pela “geração mimeógrafo”, que reutilizou o poema-piada e o poema-crônica-de-jornal de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, sem acréscimo de informação estética nova. Na prosa de ficção, alguns autores voltaram ao romance realista, cujo modelo é Graciliano Ramos, ou ainda desenvolvem uma prosa midiática, que parodia Charles Bukowski e a literatura beat, em especial a sua aura de transgressão comportamental, traduzida como pornografia (mas sem as preocupações políticas, ecológicas e espirituais de autores como Allen Ginsberg, Michael MacClure e Gary Snyder). No caldeirão da pós-modernidade, todas as formas do passado remoto ou recente tornaram-se válidas, já que a categoria do novo foi deslocada do pensamento artístico e a própria “noção de valor estético” foi “desestabilizada”, conforme escreveu Heloísa Buarque de Hollanda no prefácio à antologia Esses Poetas (HOLLANDA, 2001: 9). Segundo ela, “assistimos ao que poderia ser percebido como um neoconformismo político-literário, uma inédita reverência ao establishment crítico” (idem, 16). Numa era de acomodação estética e cultural, sem um projeto de futuro para a arte ou para a sociedade, estaríamos condenados ao eterno retorno de linguagens codificadas, sem nenhuma possibilidade de experimentação estética?

            No ensaio Poesia: questão de futuro, Eduardo Milán afirma que “A poesia latino-americana de hoje se debate numa clara divisão: regressar de forma acrítica a um passado canônico ou continuar a busca de novos meios de expressão” (MILÁN, 2002: 72). O retorno a um “passado canônico”, segundo o poeta e crítico uruguaio, implica a “fuga de um presente caótico” e seria uma “tentativa de buscar refúgio naqueles momentos históricos, especialmente em sua aura, que auguravam uma tranqüilidade espiritual dependente de um certo estado do mundo” (idem). A esse “estado do mundo” corresponderiam formas tradicionais bem conhecidas na história literária, como o soneto, a lira, o romance, cuja “carga crítica implícita” e “grau de novidade” estariam “perdidos para sempre” (idem). O retorno a essas “formas canônicas do passado”, prossegue o autor uruguaio, pela sua “perda de atualidade”, supõe uma “a-formalidade” que só é possível “pelo estado atual do mundo: perda da fé na história como motor de mudanças, derrocada das utopias, tanto estéticas como históricas”. (idem). A conclusão do autor, porém, não é pessimista: a busca do novo passaria por uma “revalorização” (não retorno) do passado, vê-lo “com os olhos de hoje”,  não para repeti-lo, mas para aprender com ele e se pensar em novas estratégias de criação. A tese defendida por Milán é similar à apresentada por Haroldo de Campos, que via na “apropriação crítica” de uma “pluralidade de passados” o ponto de partida para uma “pluralização de poéticas possíveis” (CAMPOS, 1997: 268-69) Renunciando ao “projeto totalizador da vanguarda”, Haroldo de Campos propõe uma “poesia de pós-vanguarda” ou da “presentidade”, que estaria “em dialética permanente com a tradição” (idem). Essa poesia do agora não exclui a idéia de invenção, “que continua sempre vigente”, conforme declarou em sua última entrevista, publicada na revista Et Cetera. “O poema pós-utópico nasce pontualmente nessa conjuntura dialetizada, onde são muitas as possibilidades combinatórias do passado de cultura com a agoridade, a presentidade, a imaginação criativa, a invenção”. (idem) O diálogo com o “passado de cultura”, segundo Haroldo de Campos, deveria ser seletivo, recuperando elementos ainda estranhos ou pouco assimilados ao nosso repertório poético, e portanto com um grau ainda presente de novidade e surpresa (podemos recordar aqui a recuperação da forma do labirinto poético, realizada por Frederico Barbosa, ou ainda a recriação do oriki iorubá por Antonio Risério e Ricardo Aleixo, no campo da etnopoesia).    

Haroldo de Campos aponta também a importância dos meios eletrônicos, que “podem trazer um novo e fecundo instrumental para a criação (como já o estão fazendo, veja o caso paradigmal de Augusto de Campos e as personalíssimas intervenções de Arnaldo Antunes)” (idem). Heloísa Buarque de Hollanda aponta que, mesmo dentro de um cenário literário em boa parte conservador, “a poesia articula-se em várias realizações e performances, com as artes plásticas, com a fotografia, com a música, com o trabalho corporal” (HOLLANDA, 2001: 14), citando inclusive o “poema holográfico”, “o poema clip”, a “vídeo-poesia tridimensional” e os “lançamentos programados de CDs” (idem). A poesia mais inventiva realizada hoje não está apenas nos livros, mas também nos meios eletrônicos, inclusive em revistas digitais como Artéria, Errática, Popbox, e nas obras intersemióticas de autores como Lenora de Barros, João Bandeira, Elson Fróes, Lúcio Agra e André Vallias, que investigam as possibilidades combinatórias entre escrita, som, imagem e movimento. Ao mesmo tempo em que se desenvolve uma poesia digital, surgem tendências de renovação do texto poético, como o neobarroco, o minimalismo, o formalismo informal e a etnopoesia, como veremos nos tópicos seguintes.

1.2 A poética da “pérola irregular”  

            A poesia da Geração 90 tem como marcos fundadores os livros Rarefato (1990) e Nada feito nada (1993), de Frederico Barbosa; Collapsus linguae (1991) e As banhistas (1993), de Carlito Azevedo; Saxífraga (1993), de Claudia Roquette-Pinto; Ar (1991) e Corpografia (1992), de Josely Vianna Baptista. Todos esses livros, de elevado grau de elaboração de linguagem, registram estilos e obsessões pessoais bem definidos; no entanto, é possível identificarmos algumas similaridades formais, como o uso da metáfora, a riqueza imagética, as referências à pintura, à fotografia e ao cinema, o vocabulário erudito e a sintaxe fraturada, que não elimina o discurso mas o redimensiona de maneira inventiva. São poemas que se afastam da espacialização gráfica e da fragmentação léxica do concretismo e também da linguagem coloquial e prosaica da “geração mimeógrafo”, aproximando-se de uma construção mais hermética ou barroquizante que exige do leitor uma cumplicidade de repertório e uma não menos árdua estratégia de leitura. O verso não é abolido, mas reconstruído para além da camisa-de-força da métrica e das facilidades oferecidas pelo verso livre, abrindo um campo de experimentação para a poesia enquanto elaboração verbal. A presença do barroco, nesses poetas, é mais explícita na fase inicial de Frederico Barbosa (leitor de A experiência do prodígio, de Ana Hatherly e autor de um Labyrintho difficultoso) e em Josely Vianna Baptista, tradutora de poetas latino-americanos neobarrocos como Lezama Lima, Severo Sarduy e Nestor Perlongher; já em Carlito Azevedo e Claudia Roquette-Pinto, essa presença é menos visível como referência direta, mas é verificável em seus procedimentos estilísticos (que incorporam ainda recursos da poesia francesa e norte-americana). Com certeza, não podemos afirmar que estes poetas formam uma tendência no sentido de uma articulação voluntária de autores em torno de um projeto específico, ao contrário do que aconteceu na poesia de língua espanhola, em que o neobarroco é um movimento assumido por poetas como José Kozer e Roberto Echavarren, autores de ensaios e antologias em que essa proposta é apresentada em termos teóricos e conceituais. No caso brasileiro, podemos falar em sincronicidade e coincidência de leituras e pesquisas estéticas, sendo possível localizar uma linhagem barroquizante em poetas anteriores, como Haroldo de Campos (Galáxias), Paulo Leminski (Catatau), Wilson Bueno (Mar Paraguayo) e Horácio Costa (Satori). Entre os elementos que permitem aproximar os autores brasileiros de seus pares latino-americanos podemos citar a quebra de fronteiras entre os gêneros literários e a criação de textos híbridos entre prosa e poesia (como ocorre nos textos de Josely Vianna Baptista, por exemplo, em que a espacialização entre as letras e o alinhamento “blocado” expande as linhas, simulando o andamento da prosa); a mescla de referências cultas e populares, em especial da cultura de massa (como os poemas de Frederico Barbosa que dialogam com o cinema e o jazz); e a colagem de símbolos e referências extraídos de fontes ocidentais e orientais, do presente ou de um passado remoto, conforme uma visão mais abrangente e sincrética da cultura (o que distingue a escrita barroquista da concepção “nacional-popular” dos anos 1960-70 que inspirou a poesia de participação política). A esse respeito, escreveu o crítico Manuel da Costa Pinto, no livro Literatura brasileira hoje: “O sincretismo americano de línguas, raças e civilizações foi elevado pelo neobarroco à categoria de mito fundador, identidade trans-histórica à qual podiam ser anexadas outras culturas”. (PINTO, 2004: 55) Na literatura brasileira, porém, segundo o mesmo crítico, “o neobarroco ficou mais circunscrito à dimensão de uma subjetividade que sobrevive ao naufrágio dos discursos nacionais, recriando seu mundo através de uma mitologia pessoal que se apropria de diferentes tradições literárias” (idem).  Como exemplo dessa poética sincrética que explora ao máximo os recursos lúdicos da linguagem, reunindo efeitos sonoros e visuais para estimular a experiência sensorial e intelectiva do leitor, citamos a terceira parte do poema Rarefato, de Frederico Barbosa:
  
Dominado pela pedra, insone, 
descolorido, o crime principia  
nas altas horas de noite vazia  
ganha corpo no decorrer do dia.  
     
Ganha corpo no decorrer do dia,  
dominado pela pedra insone  
dor de náusea delicada e infame,  
das altas horas da noite vazia.
Dor de náusea delicada, infame,  
nas altas horas na noite vazia  
ganha corpo no decorrer, no dia  
dominada pela pedra, insone.
Ganha corpo no decorrer do dia,  
dor de naúsea delicada e infame  
descolorido, o crime principia  
alia-se ao tédio impune e some.
  
Esta seção do poema é formada por quatro quartetos, com versos de métrica próxima ao decassílabo, que se repetem nas estrofes em diferentes posições, com poucas variações e acréscimos, permitindo diferentes leituras e possibilidades rítmicas, constituindo um labirinto de versos, técnica combinatória e permutatória praticada no maneirismo português e que ganhou impulso na época barroca. Já no Labyrintho difficultoso, do livro Nada feito nada, Frederico Barbosa faz um labirinto de palavras, em que a distribuição espacial e geométrica das palavras na página permite leituras na horizontal, na vertical, na diagonal e em seqüências livres, multiplicando a geração de significados. É preciso ressaltar que essa tendência barroquizante não acompanhou toda a trajetória dos poetas aqui citados; Frederico Barbosa, por exemplo, inaugurou nova fase com os livros Contracorrente (2000) e Louco no oco sem beiras (2001), em que concilia o artesanato da linguagem com uma temática mais urbana, incorporando o uso da gíria, do palavrão e do discurso coloquial livre; Carlito Azevedo renunciou à experimentação estética, que obteve resultados mais radicais no livro As banhistas, assumindo outro projeto, que retoma a tradição modernista de Bandeira e Drummond e a poesia marginal da década de 1970; Claudia Roquette-Pinto buscou uma dicção mais lírica, intimista e discursiva em livros como Corola (2001) e Margem de manobra (2005), que incluem também poemas sobre a violência urbana no Rio de Janeiro e conflitos internacionais como os de Sarajevo. Josely Vianna Baptista, por sua vez, manteve a dicção barroquizante em Os poros floridos (2002), mas com outra arquitetura poética, que abdica da visualidade e adensa o discurso com um trabalho semântico que explora as possibilidades sensoriais da palavra, com ênfase na relação entre a escritura e o corpo, recordando a metáfora de Sarduy da poesia como tatuagem. A estética barroquizante, talvez a mais inventiva da poesia brasileira contemporânea,  teve continuidade criativa na obra de autores mais jovens, como a paulista Adriana Zapparoli e o cearense Eduardo Jorge, que estrearam em livro na presente década.

1.3 A poética da arquitetura concentrada

         A construção poética concisa, fragmentária, que condensa os recursos da linguagem e se choca com violência contra a sintaxe discursiva e a própria noção de verso define a tendência minimalista, que teve um momento de expansão na poesia brasileira na segunda metade da década de 1990, a partir da publicação do livro Ossos de borboleta (1996), de Régis Bonvicino, que também divulgou entre nós a poesia norte-americana de vanguarda, e em especial a obra de Robert Creeley, expoente do Black Mountain College, e dos autores ligados à Language Poetry da década de 1970, como Michael Palmer e Charles Bernstein. O minimalismo defendido por esse grupo, ao qual se ligaram inicialmente poetas jovens como Kleber Mantovani (Sombras em relevo, 1998) e Tarso de Melo (A lapso, 1999), entre outros, pratica procedimentos facilmente identificáveis que, pela excessiva repetição, logo se tornaram fórmulas fixas: o uso exclusivo da caixa baixa, o espaço duplo, os verbos no infinitivo, a descrição elíptica de cenas urbanas e a incorporação no vocabulário de termos como algum, ninguém, esse, talvez, entre, como, para reforçar uma imprecisão do sentido — recurso que, como aponta Marjorie Perloff no texto de “orelha” a Ossos de Borboleta, advém da leitura de “mestres norte-americanos como William Carlos Williams, Robert Creeley e George Oppen” (BONVICINO, 1996). O principal recurso estilístico utilizado por essa tendência é a metonímia, aliada à elipse, embora apareçam também metáforas de sabor surrealizante, que derivam dos tender buttons de Gertrude Stein. A esse respeito, Manuel da Costa Pinto fala em “justaposição de frases nominais, refratárias às correlações lógicas”, e ainda de uma “língua desconexa” (PINTO, 2006: 86-87). A reverberação das técnicas mais evidentes da Language Poetry, que não pode ser reduzida a esses recursos, acabou estabelecendo um padrão que não causa mais surpresas. Vale a pena ressaltar que a prática da concentração verbal, da fragmentação e da síntese já estava presente na “poesia pau-brasil” de Oswald de Andrade, que, no dizer de Paulo Prado, oferecia, “em comprimidos, minutos de poesia” (ANDRADE, 1978: 70). A experiência poética oswaldiana, que deriva das “palavras em liberdade” do futurismo italiano, das técnicas de montagem do cinema e do diálogo com as artes plásticas (em especial o cubismo), foi o ponto de partida da Poesia Concreta, na década de 1950, que operou uma síntese radical das vanguardas históricas, levando à desarticulação da sintaxe e da palavra, à espacialização e reconfiguração visual do poema. A influência concretista é visível em diferentes poetas que, nas últimas décadas, praticaram uma poesia concisa, substantiva, focada na materialidade da palavra poética, como Carlos Ávila, Duda Machado, Paulo Leminski e Júlio Castañon Guimarães, e está presente em boa parte da produção poética mais recente. Um poeta minimalista da Geração 90 que merece atenção pela originalidade e voz pessoal é Ronald Polito, autor de livros como Solo (1996) e Vaga (1997), entre outros títulos. A angústia do deslocamento, o mal-estar no mundo e o desencontro de sentido entre a linguagem e as coisas são algumas das obsessões do autor; ele cria uma tensão entre o subjetivo e o objetivo numa escrita clara e de contornos mínimos, que se contenta com a brevidade de um haicai para resumir a paisagem existencial. Assim, por exemplo, no poema Muda, publicado no livro Vaga:

silêncio sem fim
um grito em um estojo
— para não esquecer —
entre suspiros           afora
rumores de golpes
— ruídos

Este poema é construído a partir de oposições entre silêncio e grito, memória e esquecimento, ausência e presença, com economia de metáforas e imagens; o aspecto temático é sugerido, de modo impreciso, por termos como rumores, suspiros, ruídos. Numa composição de apenas seis linhas (sugerindo a justaposição de dois haicais), o autor conseguiu criar uma atmosfera de tensão (sintetizada na linha “um grito em um estojo”) sem usar a voz em primeira pessoa e sem delimitar ações externas; é um poema altamente sugestivo, que faz pensar na concentração da poesia japonesa e na pintura de traços mínimos do sumi-ê. Outros poetas minimalistas que se destacam pela originalidade, entre os que publicaram o primeiro livro após 2000, são Virna Teixeira (Visita, 2001; Distância, 2005), Danilo Bueno (Fotografias, 2002; Crivo, 2004) e André Dick (Grafias, 2002; Papéis de parede, 2004).

1.4 A poética do formalismo informal

         A influência do cinema, da música popular, da filosofia oriental, da mitologia beat e das histórias em quadrinhos é visível em autores como Ademir Assunção (LSD Nô, 1994; Cinemitologias, 1998; Zona branca, 2001), Maurício Arruda Mendonça (Eu caminhava assim tão distraído, 1997), Ricardo Corona (Cinemaginário, 1999; Tortografia, 2003; Corpo sutil, 2005) e Rodrigo Garcia Lopes (Solarium, 1994; Visibilia, 1997; Polivox, 2001; Nômada, 2004). São poetas que mesclam referências cultas às linguagens da comunicação de massa, explorando também o imaginário e as formas estéticas de culturas não-ocidentais, como os mitos indígenas e a poesia chinesa e japonesa. Eles criaram revistas literárias como Medusa, Coyote, Oroboro e realizaram shows e performances artísticas, levando a poesia para fora de seu ambiente exclusivamente literário. Ademir Assunção organizou o ciclo de música e poesia Outros Bárbaros, no Itaú Cultural, e lançou o CD Rebelião na Zona Fantasma, onde faz um interessante cruzamento de linguagens com o blues, o rock e o poema falado; Ricardo Corona gravou os CDs Ladrão de fogo e Sonorizador, onde dialoga com a música contemporânea de vanguarda, e Rodrigo Garcia Lopes lançou o CD Polivox, explorando os recursos da poesia vocalizada com os ritmos da música popular brasileira. A criação de Ricardo Corona abrange também o campo da poesia visual, em que conta com a parceria da artista plástica Eliana Borges (em Tortografia). Apesar do interesse de todas essas formas de experimentação com o som, a imagem e a expressão corporal, vamos nos ater, neste tópico, à produção textual dos autores. No livro Cinemitologias, composto de pequenos poemas em prosa que dialogam com desenhos indígenas, Ademir Assunção faz um diário de sonhos, construídos com recursos da linguagem cinematográfica, como nestas passagens:

13.05

É como se um pássaro pousasse na pálpebra do Dragão Adormecido. É como se o Dragão Adormecido sonhasse um planeta habitado por flores de oxigênio. É como se as flores de oxigênio roçassem a têmpora de um samurai enlouquecido. É como se o samurai enlouquecido só existisse no sonho de um poeta que sonha com um dragão sonhando. É como se nada disso existisse. É como se fosse pintura de Matisse. É como se fosse cena de um filme de Kurosawa. Sonhos.

18.11

Cacos de vidro rasgando a superfície da água. Um peixe-miragem mergulha no espelho, crispa as escamas em seu próprio reflexo, engole-se a si mesmo, desaparece no lago profundo de seu avesso.


No prefácio a Cinemitologias, Ademir Assunção diz que buscava, “nesta pequena aventura literária”, obter “um fluxo vertiginoso de imagens, como os processos oníricos, reciclados e transformados em linguagem escrita” (ASSUNÇÃO, 1998: 10). Citando Glauber Rocha, que “comparava a estrutura de montagem da linguagem cinematográfica com a estrutura dos sonhos” (idem), Ademir procurou não apenas fazer “referências explícitas a sonhos e filmes”, mas “incorporar elementos implícitos do cinema em suas próprias estruturas — cortes, fusões, seqüências, closes, flashbacks, silêncios, ruídos (idem). O diálogo de Ademir Assunção com o cinema, iniciado em Cinemitologias, fica mais evidente no livro seguinte Zona branca, onde encontramos, no poema O Sacrifício, versos como estes: “doce aroma de tâmaras / apodrecidas / : borboletas de vidro / asas-navalha / no ar pesado / da câmara mortuária / onde volto / para morrer mais um pouco” (ASSUNÇÃO, 2001: 14). Aqui, a elipse funciona como um corte de câmera, e a aglutinação de substantivos, como montagem. A visualidade é reforçada pela espacialização das palavras na página, que cria uma estrutura para o movimento rítmico e fanopaico do poema, e ainda por closes como estes: “unicórnio de chifre amputado” (idem), “leões famintos no zoológico urbano / mordem as próprias orelhas” (idem, 41), “strippers que após a roupa / arrancam a própria pele” (idem, 48). Ricardo Corona também realizou um interessante cruzamento de linguagens no livro Cinemaginário, onde encontramos poemas como A lua finje mas já reflete sóis: “lascas de zinco refletindo / um sopro quente passa / do solo sobe um hálito quente / um vento mantra passa / o rubro horizonte roça a pele da pedra / a lua finje mas já reflete sóis”. Este poema é construído com versos roubados de outras peças do livro, numa operação de montagem e colagem, que dialoga com as técnicas do cinema e também das artes plásticas (lembremos aqui de Kurt Schwitters, aplicando bilhetes de metrô e outros impressos da sociedade industrial em suas telas). Em Rodrigo Garcia Lopes, vamos encontrar procedimentos da linguagem cinematográfica em diversos momentos de sua obra, como na série Seis movimentos de câmara, do livro Nômada. Este poeta, assim como Maurício Arruda Mendonça, assimilou influências de Paulo Leminski e da Poesia Concreta, mas também de autores norte-americanos como Walt Whitman, Gertrude Stein, John Ashbery, William Burroughs e da poesia chinesa e japonesa. O resultado desse sincretismo é uma poesia de dicção coloquial, melódica e fluente, com o uso eventual de rimas, aliterações e do verso longo, próximo à prosa, mas sem desprezar o uso espacial das linhas na página. A imagem é um elemento importante para a articulação do seu pensamento, com o uso de closes e cortes metonímicos para a descrição de cenários da natureza, como neste fragmento de Stanzas in meditation, do livro Visibilia: “Folhas negras caem, rufam em profusão. O vento encrespa a / Água, Tempo enruga / faces. Um vale revela / cannyons, grutas” (LOPES, 1997: 31).

1.5 A poética da miscigenação transistórica

         A recriação de formas poéticas de culturas antigas e não-ocidentais, como o oriki africano, o sijô coreano ou os cantos xamânicos de tribos esquimós corresponde a uma tendência conhecida como etnopoesia, cujo principal representante é o poeta e ensaísta norte-americano Jerome Rothenberg. Conforme diz Pedro Cesarino, a etnopoesia não é uma “estética dos excluídos” (ROTHENBERG: 2006: 7), ou seja, uma valorização da poesia praticada por autores de determinados grupos sociais marginalizados historicamente, como mulheres, negros ou gays, ação afirmativa de caráter mais político ou sociológico do que estético. Também não se trata de “exotização” (idem), nem de um exercício de arqueologia literária que trata os textos de povos antigos como linguagem arcaica ou morta. Estamos diante de uma noção mais radical da literatura, que olha para o passado sem perder de vista o momento presente e os desafios do processo de criação. Rothenberg afirma que a etnopoesia nasce da suspeita de que “certas formas de poesia, assim como certas formas de arte” que “permeavam as sociedades tradicionais”, geralmente com um sentido religioso, “não apenas se assemelhavam, mas há muito já haviam realizado o que os poetas experimentais e artistas estavam tentando fazer” (idem, 6). Como exemplo dessa afirmação, o autor norte-americano cita os rituais indígenas em que “música & dança & mito & pintura” faziam parte da obra artística coletiva, algo similar ao que entendemos como happening. Nessas manifestações poéticas ancestrais, em que sonho, mito e arquétipos coletivos estão presentes, dando uma dimensão sagrada ao fato artístico, o próprio corpo faz parte da encenação poética, pelo uso de determinadas vestes, tatuagens e adornos, pela prática da dança individual ou coletiva, por práticas sexuais. Rothenberg percebeu que a poesia ancestral não é apenas uma construção verbal, mas multimídia. Por isso mesmo, dialogar com tais formas de manifestação artística por meio da tradução intersemiótica ou da criação de novos textos poéticos não significa buscar uma suposta “pureza” ou “autenticidade” de culturas arcaicas, mas transgredi-las para trazê-las ao presente como formas vivas, pulsantes, e não convertê-las em peças de museu.   Enquanto nos Estados Unidos o tema da etnopoesia tem sido pesquisado desde a década de 1950, despertando o interesse de autores da geração beat como Gary Snyder,  este é um fenômeno literário “quase amortecido na poesia brasileira contemporânea”, segundo Pedro Cesarino (idem, 8). Sem dúvida, podemos recordar os diálogos criativos com as culturas indígena e africana realizados ao longo de nossa história literária por Gonçalves Dias (I Juca-Pirama), Sousândrade (O guesa errante), Mário de Andrade (Macunaíma), Raul Bopp (Cobra Norato) e outros poetas, mas estudos sérios de etnopoesia no Brasil são ainda raros; podemos citar o livro Oriki orixá, de Antonio Risério, conjunto de ensaios sobre a poesia ritual iorubá acompanhado de recriações inventivas dos textos africanos; a tradução do Popol Vuh por Sérgio Medeiros e Gordon Brotherston; a antologia de poesia guarani chamada Kosmofonia mbya guarani, com traduções de Guillermo Sequera e Douglas Diegues; os Cadernos de Ameríndia, com traduções de Josely Vianna Baptista; e sobretudo a poesia de Ricardo Aleixo, que buscou inspiração no oriki num livro notável chamado A Roda do Mundo (1996), de onde citamos o poema Mamãe grande, dedicado à Iemanjá, em que o andamento anafórico e reiterativo iconiza o movimento das ondas:  

todas
as águas do mundo são
Dela, fluem
refluem nos ritmos
Dela, tudo que vem,
que revém, todas
as águas
do mundo são
Dela,
fluem refluem
nos ritmos Dela.
tudo que
vem, que revém,
todas as águas
do mundo
são Dela, fluem
refluem
nos ritmos Dela, tudo
que vem
que revém.

Essa forma de composição poética, que pertence à tradição oral africana, conforme diz o poeta e antropólogo Antonio Risério no livro Oriki orixá, era utilizada para louvar os deuses, reis e personalidades ilustres (a palavra ori quer dizer “cabeça”, e ki significa “canto”). O oriki, poema cantado e dançado em cerimônias sociais e religiosas, não tem “medida métrica fixa, armação estrófica ou número de ‘versos’ previamente estabelecidos” (RISÉRIO, 1996: 42). Não se trata de uma “forma fixa”, mas de uma “forma orgânica”, que “opera pela justaposição de blocos verbais” e “pelo princípio da montagem”, excluindo a linearidade de tipo aristotélico; a estrutura do texto é paratática, com as proposições se sucedendo “numa colagem de unidades, sem que se providenciem nexos discursivos para uni-las num encadeamento lógico e/ou cronológico” (idem, 44). O próprio Risério realizou interessantes recriações de orikis, traduzidos diretamente do iorubá, respeitando as aliterações, assonâncias e outros jogos fônicos dos poemas, como neste Oriki de Xangô: “Xangô oluaxó fera faiscante olho de orobô / Bochecha de obi. / Fogo pela boca, dono de Kossô, / Orixá que assusta.” (RISÉRIO, 1996: 133). A produção poética de Ricardo Aleixo e de Antônio Risério, diga-se de passagem, não se resume ao oriki; Aleixo é autor de poemas visuais e sonoros, realizou eventos multimídia e performances com a Sociedade Lira Eletrônica Black Maria, além de publicar livros de versos notáveis como Festim (1992), Trívio (2001) e Máquina zero (2004). Risério, por sua vez, além da obra ensaística (Textos e tribos, Ensaio sobre o texto poético em contexto digital, entre outros títulos), publicou dois livros de poemas: Fetiche (1996) e Brasibraseiro (2004, em parceria com Frederico Barbosa). Todas as experiências inventivas que citamos neste ensaio retomam e desenvolvem processos e técnicas das vanguardas, mas sem um projeto único e totalizador, sem um caráter militante, com sua ortodoxia e guerra declarada às instituições; são “revoluções solitárias”, para citarmos Octavio Paz, inseridas dentro do campo de possibilidades do presente, mas sem renunciar à pesquisa estética e à busca da inovação formal, sem o que teríamos de declarar, à maneira de Francis Fukuyama, o “fim da poesia” como arte.

Referências bibliográficas:

ALEIXO, Ricardo. A roda do mundo (com Edimilson de Almeida Pereira). Belo Horizonte: Mazza edições, 1996.

ANDRADE, Oswald. Poesias reunidas. São Paulo: Civilização Brasileira, 1978.

ASSUNÇÃO, Ademir. Cinemitologias. São Paulo: Ciência do Acidente, 1998.

ASSUNÇÃO, Ademir. Zona branca. São Paulo: Altana, 2001.

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