sábado, 11 de outubro de 2014

RETRATO DO ARTISTA

 

A POÉTICA DO CUTELO EM JORGE LÚCIO DE CAMPOS

 Jorge Lúcio de Campos realiza uma pesquisa poética que valoriza as imagens inusitadas. Os objetos, retirados do uso cotidiano, são redesenhados como entes do imaginário, em versos breves, recortados, numa sintaxe de silêncio, fratura e ruído. A fala assimétrica, áspera, estabelece relações de espelhismo com a face da história, regida pelos signos da cicatriz e do corte. Todos esses vetores conceituais estão presentes na jornada criativa do autor carioca desde os primeiros títulos publicados, Arcangelo (1991), Speculum (1993) e Belvedere (que reúne poemas do autor escritos entre 1988 e 1993). Nesta sua primeira lírica, comparece o diálogo consciente com a fotografia, o desenho e a pintura, como na composição intitulada O belo pássaro decifra o desconhecido para um casal de namorados, dedicada a Joan Miró: “já contorcido / o desenho / se devora / (andorinhas / disfarçadas) / luvas e funis / ensaiam uma / dança erótica”, de humor discreto e sutil. Em outra peça desse período, intitulada Forgerie, temos uma quase ars poetica: “um fio de navalha / ceifa a vida nas / palavras de Tzara / ‘nossos nervos / são chicotes / entre as mãos / do tempo...’ ”, que realiza, em apenas sete linhas, o entrecruzamento de vida, literatura e história, marcadas pelo emblema da incisão, mutilação de cutelo. A dor da linguagem, publicado em 1996, revela o amadurecimento do projeto literário do poeta, que mantém a estratégia da extrema concisão e desfazimento da previsibilidade do discurso lírico, numa dicção seca, “faca só lâmina”, que ecoa, por vezes, a fala pedrosa de João Cabral de Melo Neto: “Se tudo digo no / metal pintado em /que me sinto – eu / mesmo, sem vento / e de novo, em / queda rubra / desde o início” (As férias de Hegel) . O eu lírico não é abolido, mas redimensionado, sem eloquência ou efusão memorialística, como ser de linguagem, numa operação antinarcísica, conforme a tradição inaugurada pela poesia crítica de Jules Laforgue e Tristan Corbière. A ironia, que abala a presumida seriedade lírica, está presente em diversas peças do livro, como por exemplo em O cão, a chuva, dedicada ao poeta sérvio Vasko Popa: “nada quero propor -- / mesmo que não vá / a parte alguma / na verdade não / importa: mais ou / menos em torno / deveria latir e / ninguém ligaria”.  Em outra peça do volume, a aniquilação irônica do eu é ainda mais incisiva: “Mais do que uma / pedra lisa que aponta / para o que as partes / não completam / Emerge na planura / em que flutua / zero ele próprio / no infinito” (Vislumbre). Em À maneira negra, publicado em 1997, a dimensão plástica da poesia de Jorge Lúcio de Campos  atinge um grau mais elevado de tensão, em peças como Retrato de Regina num quimono preto: “Pouco a ver ou / a dizer daqueles / seios de Alechinsky -- / as coisas do mundo / a argila quente do dia. / Pouco a ver / ou a dizer daquele / queixo de Rodchenko / -- um eu-te-amo de / delírio reencontrado / (um pouco a língua e / a nuca por completo) / Ao redor daquelas / patas de Tanguy / só cabeça, tronco / e membros”, verdadeiro strip-tease poético construído a partir de relações imaginárias entre o corpo humano e um museu pessoal construído por obsessões. A ênfase metalinguística e o diálogo com outras linguagens artísticas não excluem a reflexão crítica sobre a realidade, o que notamos especialmente em Prática do azul, publicado em 2009, onde a tensão entre arte e vida ganha contornos quase expressionistas, como acontece no poema King Kong: “Naco de carne da noite / com seus dentes podres / (...) / Aos poucos, o / defeco / -- um gás / de guerra resfolega / em minhas ventas”.

(Artigo publicado na edição de outubro na revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA.)

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