quarta-feira, 2 de abril de 2014

RITO DA FALA AO ESPELHO: UMA LEITURA DE RICARDO CORONA


O cinema é a construção de uma realidade imaginada, como o sonho, que não é menos real (ou ilusório) do que a existência cotidiana, como na parábola de Chuang Tzu. O cinema é menos um espelho, um eco do real do que uma metáfora ou conceito do mundo. Olhar uma cena ou paisagem, de certo modo, é inventá-la; é dar nome às coisas, como Adão. O sujeito cria o mundo e é criado por ele. Viver é navegar entre paradoxos, e saber quem olha, quem é visto não é o menor de todos. Estas são as impressões que me ocorrem ao reler o livro Cinemaginário, de Ricardo Corona, publicado inicialmente em 1998 pela Iluminuras e relançado neste ano pela Patuá. O autor é um poeta do olhar, fotógrafo de imagens raras. Assim, por exemplo, em Ventos e uma alucinação, talvez o melhor poema do livro: “sol tórrido no/ aljazar/ (lascas de zinco refletindo)/ sol batendo/ no sal”. Em outra seção desta peça, mais uma jóia: “atrás das pálpebras/ o olho dá forma ao sol/ : bola vermelha/ (um vento mantra passa)/ a íris fosforesce/ aureolando as pupilas em brasa”. Aqui, revela-se a influência da fanopeia de Pound e dos flashes inusitados do haicai, como em Bashô (“a água/ escorre do teto/ pelo ninho de vespas”, na tradução de Paulo Leminski, outra referência destacada em seu processo formativo). Ricardo Corona não é um voyeur de paisagens tranqüilas, mas um cultor da imagem tensa, cortante, cicatriz à flor da pele.

Em seu cinema do imaginário, usa técnicas de cortes, closes, montagens, como em Narayama: “põe/ a meia-lua dos pés na mudez das pedras/ corpo e alma no chakra da encosta/ a fronte na fonte fresca/ lava a saúva das costas”, poema inspirado no filme A balada de Narayama, de Shohei Imamura. Vale a pena ressaltar, aqui, a presença do cinema em outros autores que começaram a publicar na década de 1990, como Ricardo Aleixo (Cineolho), Ademir Assunção (Cinemitologias) e Rodrigo Garcia Lopes (Nômada). No caso de Ricardo Corona, a influência da linguagem fílmica mescla-se a uma miscelânea de outras referências, tão heterogêneas como o barroco, a melopéia grega, a lírica beat e a cultura pop. Em Ondas na lua cheia, por exemplo, a presença do mar homérico: “A lua que tudo assiste/ agora incide/ O mar/ — sob efeito — ergue-se/ crispado de ondas espumantes/ Sua língua de sal/ lambe e provoca/ as escrituras da areia firme/ Ondas deslizantes/ redesenham/ onde outras ondas ainda/ desredesenharão/ fluindo/ no fluxo/ da influência/ Sob efeito lunar,/ o mar muda/ e a lua,/ antes toda,/ agora, mínima/ e quem com ela muda?”. Há outros aspectos na poesia de Ricardo Corona que merecem também ser levados em consideração: a musicalidade, de leveza própria da balada, da canção popular, como no poema Nascem flores com o tempo ("sentir, eu sei, tem seu preço"); as referências mitológicas, da Grécia a Iemanjá; o uso do humor, por vezes próximo ao non sense ("meses ímpares/ de um ano par/ que passou"); e a diversidade léxica, que inclui o uso da gíria, do coloquial, ao lado de termos eruditos e de nomes da parafernália tecnológica. Por vezes, Ricardo subverte mesmo o sentido usual de substantivos e adjetivos, criando híbridos como “galáxia canibal” e “céu anfíbio”. Na variedade de recursos e técnicas usadas neste volume, afins ao cinema e à pintura, a colagem está presente em peças de destaque, como A lua finge mas já reflete sóis: "lascas de zinco refletindo/ um sopro quente passa/ do solo sobe um hálito quente/ um vento mantra passa/ o rubro horizonte nubla de repente/ um peixe roça a pele da pedra/ a lua finge mas já reflete sóis", poema construído a partir de versos recortados, "roubados", de outras peças do livro, numa espécie de mini-antologia, resumo de si mesmo. 

A poesia conversa com o som e a imagem
O diálogo com as artes visuais acontece de forma mais intensa em Tortografia (2003), trabalho realizado em parceria com a artista plástica Eliana Borges composto de poemas visuais e caligráficos que exploram diferentes texturas, grafias e relações entre imagem e palavra, situadas num campo experimental diverso daquele praticado pela Poesia Concreta: há um grau maior de indeterminação, acaso e ruído nesses trabalhos, que escapam à funcionalidade construtivista. Deusconhecido, por exemplo, é um poema cinético composto de uma única palavra, que aparece modificada em várias páginas, até se converter em borrão, numa voluntária abolição de som e sentido. A radicalidade inventiva de Ricardo Corona está presente também em seu trabalho com a dimensão sonora da palavra, registrado nos CDs Ladrão de fogo (2001) e Sonorizador (2007), em que o poeta subverte a forma da canção, em busca de outras possibilidades criativas, incorporando recursos da música eletrônica e das técnicas narrativas das histórias em quadrinhos. A pesquisa de formas vivas de comunicação poética realizada por Ricardo Corona recupera a tradição oral xamânica, especialmente das tribos indígenas brasileiras, como verificamos na leitura do livro Corpo sutil (2005) e sobretudo de Curare (2011), que faz um interessante diálogo entre o imaginário da etnia xetá e a herança das poéticas experimentais, investindo na espacialização do texto para realçar a oralidade, as variações rítmicas e as mudanças de dicção. Curare desconsidera as fronteiras entre prosa e poesia e sintetiza canto, narração e intervenção pictórica, utilizando os sinais de pontuação como se fossem inscrições rupestres. A variação tipológica e gráfica dá movimento às sentenças no livro, pensadas como frases sonoras de uma partitura; neste sentido, o autor potencializa o suporte livro, explorando suas possibilidades comunicativas. Curare é – entre outras coisas – uma reflexão sobre o livro, numa época em que as tecnologias eletrônicas colocam esse tema na ordem do dia. Claro: não se trata de reivindicar a morte do livro, mas sim de repensarmos o conceito e a estrutura do objeto, levando em consideração as mudanças na sensibilidade do leitor contemporâneo, operadas pela navegação no ciberespaço.
(Artigo publicado na edição de abril da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA.)

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