sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

CADERNOS BESTIAIS



ANÔNIMOS
Há um louco solto na rua.
(Os livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos.) 
Um policial pede os seus documentos.

(Há três ou quatro especialistas em língua suméria.) 

O louco entrega-lhe um tijolo.

(Uma tribo na Ásia Central escreve seus livros sagrados nos ventres de mulheres-anãs.)

O policial fica furioso porque queria um sapato.

(Um miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de faisão.)
Eles começam a discutir e logo aparece uma mulher gorda que entra na confusão.

(Sobre o que conversam as abelhas?)

O louco declara o seu amor pelos incêndios.

(Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístico?)

O policial é apaixonado por boxeadores e telepatas.

 (Os melhores poemas ainda não foram escritos, disse para mim um asceta tuaregue.)

A mulher gorda ataca o louco com a sola de um sapato.

(Quem conhece um grande romancista da Lituânia?)

O cinegrafista do Grande Telejornal filma todo o episódio para exibir no horário nobre. 

(Há indícios de vogais e consoantes em teus pequenos lábios.)

 Logo surgem legiões de publicitários, jornaleiros e vendedores de apólices de seguros e tem início uma pancadaria.

(Poucos são capazes de ler as mensagens ocultas no interior das nozes.)


FIM DO MUNDO

À memória de Jakob van Hoddis

Loba ensandecida rumina vermes de escuro escárnio.
Alguém-ninguém atravessa a rua
e em todos os cantos 
ouvem-se gritos 
feito guinchos
de um porco amarelo.
Cai um aguaceiro
na cidade esquálida
e os bairros alagados atingem as estrelas. 
Banqueiros obesos caem do telhado 
e se despedaçam.
Numa placa de rua, 
lemos: cuidado.
Quase todos têm secreções nasais;
os ônibus correm nas avenidas 
a toda velocidade,
entram nos viadutos
e se chocam contra as paredes.

Todas as palavras não são mais que uma superfície de cacos de vidro à entrada de uma cidade maldita.


JAMAIS

Para Fabrício Slaviero

bichos de verde-muco proliferam
nos entalhes do tapume;
antiaranhas deslizam
nas ramagens,
tramam teias e resíduos
de uma dor vermelha,
recíproca.
há um plasma em cada fenda,
em cada vão
de madeira apodrecida.
há um acre açafrão
em cada veio
do reboco, com seu ácido.
tateiam algo, quem, aqui –
ou apenas arrulhos, crostas, escaras,
ninguém com óculos de aro fino,
breve gravata lilás e uma refinadíssima
sensibilidade no olfato; não, ninguém,
nunca houve, jamais.


ARAMES, RETALHOS

esqueletos do nunca
onde o áspero da palavra,
brutais de dezembro.
porque esta não é a minha língua:
retorcidos de mistério,
caranguejo onagro.
onde se desdobra a pedra, onde se
desdobra o nojo desse nunca,
que se anuncia indesejoso:
são palavras em seu verde, em seu asco;
são vértebras de escárnio,
entulhos-de-orelhas à procura da mulher-dos-gatos.
porque nada faz sentido, eu sei,
neste reverso em que me falas,
primitiva, reverberante,
com a nudez que me calam os arames, os retalhos;
com a nudez de um estuque de plantas,
ruidosa, em expansão — e só me resta confessar
os fumos de aranha, inconcluso,
quando indagas sobre o meu labirinto.


FIM DE CASO

depois da separação
embora eu me dissuadisse
que a memória esfumaçada
era apenas resíduo efêmero,
a pele escandida recusava 
toda tentativa de esquecimento,
amealhava cenas e palavras
descoloridas, mas ainda cruéis,
quadros que gritam na exposição,
quadros vivos que se assenhoram
de cada minuto, de cada silêncio,
de cada pálpebra, sem cautério:
cansado de lutar com a dor,
convidei-a para dormir comigo.


CANTIGA

Penso em você eroticamente.
Até a fabulação
de outra margem,
na estranha habitação onde os números,
pares e ímpares, enlouquecem.

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Um minúsculo leão branco habita a sua fenda.


***

A ferocidade
no limiar da noite,
quando a pele —
desmedida, irremissível,
se projeta em outra pele:
nenhum destino além do nervo tumultuário.


(Poemas inéditos de Claudio Daniel)


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