sábado, 7 de setembro de 2013

MEUS POEMAS EM PROSA (II)


ANTICABEÇA (II)

Lona podre, nacos de carne, torsos caindo; escuras mariposas (stukas) caindo; sirenes, uma canção.
Bater nos cornos do céu, capricórnio adoece em luzes de urina; olhos blindados; cano de fuzil apontado para a lua.
Esferas ou cilindros de cérberos; o aço grunhe; rajadas de agni; fogos-fátuos; bocas lanhadas por detritos.
Há um pássaro de três cabeças, e um só canto; uma jovem nua flutua no céu.
Emily pediu um livro (borboleta voando) de gravuras coloridas (sonhada por um chinês), com capa veludosa (desejada por um gato) e marcador de páginas (com bigodes de mandarim).
Ela, que ama peônias, biombos, nanquins, e sonha ser enfermeira num grande hospital em Berlim.
Ela, que ama o verde mar de gaivotas, e a prata que cintila nas peças do aparelho de chá.
Isso foi há quanto tempo? Havia um piano de cauda e lenços brancos, pedaços de carneiro e o pôr-do-sol.
Agora, só há o verde-prata, ou verde-escuro, verde-panther; na boca do dragão.
(Como um livro) (de figuras) (metálicas;) (imagens) (d’esqueletos) (turvos;) (surdos) (espectros) (em sarabanda,) (invernal.)
Palavras zumbem na mente; difícil caminhar com o peso do mundo. Este é um tempo sombrio, tempo da impureza, do branco mesclado ao amarelo.
Lao Tzu rumou para o Sul, montado num touro, búfalo ou grou. O guarda da fronteira pediu-lhe sua inútil sabedoria.
  
CARANGUEJO

Aquática paisagem, faixas de areia e uma seqüência de morros, horizonte simulando música. Quiosques vendem camarões e mariscos. Meninos magros e morenos jogam bola com uma cabeça decepada. A velha senhora inglesa lê o Herald Tribune com lentes bifocais. O sorveteiro anuncia profecias apocalípticas. Há um furacão nas ilhas Fidji.  Esferas planas surgem no céu de Okinawa, como pegadas de urso. Um sargento aposentado em Kansas conversa com os peixes. Não há nada que seja realmente absurdo. Tudo está escrito em algum lugar, nas Tábuas de Esmeralda, no Popol Vuh, no Livro Tibetano dos Mortos. Há quem diga que a espuma no oceano é uma linguagem. Há uma lógica irrefutável no movimento dos astros. O destino foi escrito nas palmas de nossas mãos.  Tudo isso ignoro, não me diz respeito; palavras são detritos como algas, conchas ou brincos oferecidos à deusa das águas. Eu só deslizo as pinças entre possibilidades. Invisto minha carapaça vermelho-marrom, que você tanto ama, até o centro da dúvida, para encontrar minha fábula. Eu sou a imagem deste enigma, a contradição de um crustáceo. 
  

GABINETE DE CURIOSIDADES
  
I — SEX SHOP

Tufos pretos e umbigo impreciso na fresta vertical em colunata.

Cílios escamosos como minipeixes e uma arcada bélica verde-oliva na cabeça, à maneira pontilhista dos marines.

Pulseiras e argolas multiplicam-se nos braços e mamilos, simulando a efígie de uma rainha nigeriana.

O corte súbito no tronco impede a visão dos delicados pés, lacuna compensada pelo desbocado rubim de lábios fechados em til.

Os adereços da deusa mutilada completam-se com brincos de prata em forma de agulha, para a adequada perfuração de Romeu.

E um singelo par de algemas com a palavra love escrita em runas ancestrais.



II — PET SHOP

Pandas traficados de Pequim jogam cartas com lagartixas da Ucrânia.

Estufas com modernos sistemas de refrigeração e luz ambiental abrigam um casal de anfisbenas.

Há remédios contra pulgas e doenças de pele para o dragão de Komodo.

Na prateleira de cosméticos há um pó-de-arroz especial para lacraias.

A vendedora de imensos peitos brancos e um curto vestido dark informa os clientes sobre os hábitos noturnos de morcegos e pelicanos,

Com a esperada dedicação de quem ama o seu ofício.

Aceitamos todos os cartões de crédito e os animais, como seus donos, devem ser castrados.



COFFEE SHOP

Revistas de fitness fumam cigarrilhas de canela importadas da Indonésia.

Faces sóbrias e ponderadas como repolhos avaliam o crescimento do superávit primário.

Há um minúsculo globo ocular na xícara de café expresso.

Tortas de queijo e presunto têm selos de qualidade internacionais e as embalagens dos produtos passam por leitura ótica.

Há um nariz disfarçado no topo da palmeira de plástico.

Nossa missão é atingir e superar as expectativas dos clientes, diz a gerente de marketing (no seio esquerdo, ela tatuou uma pítia da Groenlândia).

Há uma boca retorcida no elegante toalete do café, com peças sanitárias de primeira linha e secadores de mãos automáticos.

Cabeças de executivos são caixas registradoras com um estoque limitado de palavras.


 PRISMA I

toda palavra / é um labirinto / (recrocita / corvo lunar), / (sub-reptício réptil / foge / entre folhas). / cristal negro, / búfalo negro,/ palavra enegrecida / em sons guturais, / espectros / de si mesmos. / flor de abril / acende música, / amarelo, / amarelo, / até lavoura / de fetos. / há uma anã / estrangulada / na rua aurora; /há um relógio de ponto / que só anda / para trás; / a dentadura / de clotilde; / o gosto amargo / do café. / tudo é / um cinema / mental, /pilhas de ossos- / palavras, /extintas praias, / labirinto / de cores / alteradas. / poema: / forma de ver / o escuro / que há no mundo / e em mim. / palavras caem / (fuligem),/ restos de canção: / ou abrir a porta: / entre seios / e rudimentos / de agrimensura, / entre o mistério / e um agudo / senso de beleza, / vago perfume / de papoulas, / até dessangrar / as pétalas / do canto. / nenhuma porta / (deslinde) / desatino;/ nenhuma / ou essa / que se fecha. / ou aquela, / qual,/  ou esta porta,/ este caminho,/ não há caminho./ restilo / de alvura / ou lanugem, / lúnula:/ peixes, / entre unhas.


PRISMA II

olho-de-corvo; / um, crocita; / dois, arranha; / três, escurece; / quatro, engasga, / tropismo / de piçarras. / cristal negro, / búfalo negro, / palavra enegrecida / em urros / de lacraias. / sons vegetais, / sons minerais, / sons fecais, / dissociados / de sentido. / recrocita / réptil/ em folha / lunar, / sub-reptício / acende / música / até lavoura / de restos: / há um relógio / estrangulado / e uma anã  / fazendo ponto / numa esquina / da rua aurora. /tudo é um jogo / de ossos / como saltar / à corda, / piscar / os olhos, / remoer / a canção. / tudo é cinema / mental. / entre seios / e rudimentos / de mariposas, /entre o mistério / e um agudo / senso / de extinção, / dessangrar / a beleza / (fuligem) / até um vago / perfume / de papoulas; / ou abrir a porta: /  não há caminho, /nenhum / ou este / que se fecha, / tudo é labirinto, / (deslinde) / desatino. /alvura, / lunário / de lúnulas: / unhas, / entre peixes.
  

PRISMA III

até / dessangrar / peixes, / entre unhas. / pilhas / de palavras / rotas, / restos / de canção: / flor / de abril / em amarelo, / para ver / o enigma / no mundo / e em mim. / recrocita / labirinto / lunar, / corvo / de fetos / alterados. / há o gosto / amargo / do relógio, / uma anã / que só anda / para trás / e clotilde / estrangulada / num café / da rua aurora. / tudo é mental, / mariposas / ou seios, / pétalas / ou música, /rudimentos / de mistério / e mistério. / todo labirinto / é uma palavra / do deslinde / ao desatino /(sub-reptício réptil / foge / entre lúnulas). / cristal negro, / praia negra,/ papoula enegrecida / em sons larvais / até lavoura / de fétidos./  havia uma pedra, / havia uma rosa, / havia um abismo. /tudo / é cinema / mental, / praias / e palavras, / pilhas de ossos / podres. / alguma porta / ou nenhuma, / esta / ou aquela, / esse caminho, / qual caminho? / entre um senso / agudo / de extinção / e rudimentos / de lanugem, / entre o restilo / e o séqüito /de lêmures, /todo enigma / é incapaz /de abolir / o silêncio .


PRISMA IV

cristal negro, / réptil negro, / sub-reptícia / anã negra / (amarga) / entre folhas./ flor de abril / recrocita / olho- / de-búfalo:/  unhas traçam / a agrimensura / do escuro, / acendem lúnulas / de lacraias / até tropismo / de fetos / (para ver) (a beleza) / (que há no mundo) / (e em mim). / nenhuma porta / ou esta / que se abre, / esta / que se fecha, / este caminho, / nenhum caminho / (tudo) / (é labirinto). / entre piçarras / e rudimentos / de papoulas, / entre seios / e um agudo / senso / de alvura, / lavoura / de auroras / alteradas. / (pedra) / (é um jogo) / (como saltar) / (abismos), / (piscar) / (os ossos,) / (remoer) / (a rosa,) / (cinema) / (mental) / (ou séquito) / (de desatinos). / um, dissocia / mariposa; / dois, coagula / lunário; / três, escurecem / larvais, / restilo / de cores / abolidas. / tudo é mistério, / deslinde / de lanugens / até dessangrar / palavras- / peixes.


PRISMA V

lêmures / lavoram / lúnulas, / recrocita / labirinto / (abismo) / (de espectros). / esta porta / que se abre, / prosa / de corvos, / esta porta / que se fecha, / rosa / de répteis, / não há caminho, / tudo é caminho; / flor de abril / escurece / relógios / até dessangrar / a anã / em tropismo / de lacraias. / tudo / é um jogo / amargo / como saltar / os ossos, / piscar / palavras, / traçar / na pedra / sub-reptício / urro / (para ver) / (o mistério) / (que há no mundo) / (e em mim). / entre fetos / e rudimentos / de búfalo, / entre cristais / e um agudo senso / de coágulo, / abolir / o peixe / numa agrimensura / de enigmas. / cristal negro, / seio negro, / lua negra, / restilo / de piçarras: / tudo / o que escrevo / tudo / o que escavo / tudo / o que escuto / tudo / o que escarro / tudo o que esqueço / me deslinda, / desatina, / desafina, / desarvora, / desenflora, / entre amarelos /e lanugens, / entre larvais / e mentais, / entre o que / pensa / e o que / sente, / entre o que / mente / e o que / muda, / entre o que / canta / e o que / encanta, / entre / mundo / e nada.


Para Luís Serguilha, 2008

(Do livro Fera bifronte. São Paulo: Lumme Editor, 2008)

 GAVITA, GAVITA

      escuro, escuro como um uivo — som de sombra —  esquálido e fecal —  voz miúda, no espaço espesso. gestos surdos, de pele tensionada —  mãos fluidas que tateiam o ar. sim, está enfeitiçada. ginga, negra e cega, em vôo tosco. vibra o torso, em vaivém, nas pontas dos pés. ginga e gira, com serpentes nos braços, e treme toda, torva e turva. não tem unhas, só garras; nem lábios, apenas gritos mudos. ela expande os passos, sem volúpia ou cisma, e s’incandesce, crestando o solo. é toda fera e fúria. está enfeitiçada, e me apavora. eu sorvo sua treva, e afundo em visões de salamandra. visitei as páginas de um livro de magia, e invoquei as figuras retorcidas da insânia: vêm, astaroth, asmodeus, sintam a carne que ofereço a seus caninos.

     (eu sabia os nomes das flores, quando menino, das estrelas e insetos;) (juntava lagartas numa caixa de sândalo) (e rezava pelas almas das princesas suicidadas.) (um albino ensinava-me latim) (e apertava fortemente meus testículos.) (laos deo, laos deo.)  (citações de cícero e da guerra da gália) (até soar a sineta para o desjejum.) (eu gostava dos turíbulos e ostensórios,) (dos saltérios e vitrais) (em que o filho do ho-mem) (sangrava por nossas culpas.) (excitava-me com sua dor.) (amava ícones mal pintados,) (palavras arcanas,) (música de violoncelo) (e sonhava ser marinheiro) (ou alcoólatra.) (certo dia, fugi.) (oh estações, oh castelos.) (açoitei a delicadeza,) (fiz-me barro, besta, bruto;) (um selvagem, sim, selvagem,) (e toquei tambor) (na noite do sabá.)

     (minha mãe tinha seios brancos) (e voz branca de medievo místico.) (ela foi a lua cheia,) (angélica e nivosa,) (oh monja da cela constelada.) (meu pai foi um rude fazendeiro,) (igualmente branco,) (cujo olhar tinha odor de antigas armaduras.) (recordo seu rosto de falcão,) (as pequenas mãos trigueiras,) (a voz pesada, de bacamarte.) (eles eram de diversa estirpe,) (mas eu os amei,) (em minha estranha epiderme,) (na nostalgia de outro reino,) (que não sei.) (dizem os juristas) (que no céu) (todos são brancos,) (como as velas dos santos,) (o linho,) (o algodão.) (é verdade que sou um deslocado,) (desbocado,) (excêntrica bizarria,) (rosa cúbica, talvez.) (vejam, aqui está) (o negrinho) (que fala francês,) (membro de uma raça impura,) (turba de pobres diabos,) (ratos depenados,) (pretos amaldiçoados.) (é verdade,) (confesso aos senhores,) (a minha escurez,) (mas guardo comigo) (a música das esferas.)

     está enfeitiçada, e canta ladainhas. em nervosa mímica de punhos, move-se como a naja em sua caverna, o peito magro ornado com colares de crânios, os cabelos azuis cobertos de cinzas. ela dança, dança sobre o meu ventre, agitando as armas de suas múltiplas mãos, e beija-me a boca com os acres perfumes do crematório. delírio contorcido, convulsivo / de felinas serpentes, / no silamento e no mover lascivo / das caudas e dos dentes. (não há qualquer caminho) (ou via ideal) (com trigais e monjolos,) (apenas a rua) (tortuosa do grito,) (a vereda) (fantástica) (do absinto.)

     (fui o ponto) (dos mais curiosos) (espetáculos,) (cedendo palavras) (aos atores no palco;) (e emprestei silêncio) (a minhas próprias comédias.) (sou talvez essa loucura geométrica,) (nos porões de um teatro abolido.) (mancha de tinta) (no final de cada linha,) (sem dimensões,) (mínima esfera.) (uma pausa entre vozes,) (lugar indefinido,) (porção menor de um plano,) (sinal que abrevia os vocábulos.) numa evaporação de branca espuma / vão diluindo-se as perspectivas claras... / com brilhos crus  e fúlgidos de tiaras / as estrelas apagam-se uma a uma.

     (na mocidade,) (tomei cerveja) (com vadios,) (provei do tabaco) (e do presunto tostado;) (soube de vênus) (com atrizes) (de má vida.) (se sonhei) (com o sublime?) (sim,) (foi) (numa festa) (de coxos.) (sou um porco,) (como todos) (os homens) (são porcos;) (injuriei,) (conheci) (o escarro,) (o tabefe.) (porque sei,) (sou duende;) (vejam) (minhas unhas;) (sou inferior,) (como um pedaço) (de ferro;) (um saco) (de farelo;) (migalhas) (de ração.) (por que li) (o teu livro,) (charles baudelaire?) (acreditei-me um deus.)

     está enfeitiçada, pobre leoa devassa; onde estão teus filhotes? devo banhá-la, com a água que eu mesmo fervi. ergo seu braço, para a assepsia; depois outro, e as pernas, o pescoço, as nádegas, sem nenhum erotismo: como se prepara um morto para o caixão. vesti-la, peça por peça, com as cores discretas da pobreza. assobiar talvez uma valsa, um minueto, para dar requinte a nossa sopa. por fim, velar o sono da vestal, para só depois escrever os versos que ninguém escreveu jamais. torva, febril, torcicolosamente, / numa espiral de elétricos volteios, / na cabeça, nos olhos e nos seios / fluíam-lhe os venenos da serpente.

     (arquivista, sim,) (da estrada) (de ferro,) (ninho) (de covas) (e coveiros;) (onde) (sou corvo) (entre corvos,) (negro) (entre negros,) (porque os versos) (não compram pão.) (recolher as sobras,) (para o azeite) (e as verduras.) (desviar do cuspe;) (oferecer a outra mão.) (exilado) (de mim,) (despido) (de qualquer) (delicadeza) (sou coisa) (entre coisas.) (vítor,) (o que) (fazer,) (sozinho,) (em terra desolada?)

     (houve) (um tempo) (em paris) (em que fui) (o rei) (do haxixe.) (todas) (as moças) (amavam) (minha face) (de príncipe) (etíope,) (atlante) (ou cenobita.) (eu usava) (uma gravata) (vermelha,) (flor) (de cardo) (na lapela) (e bigodes) (espessos) (de mongol.)  (é tão distinto) (ser) (um poeta) (maldito.) (meus versos) (encantavam) (insólitas) (platéias) (ao som) (monótono) (do piano) (estrangulado.) (alguém) (de suíças) (platinadas) (desenhava) (haréns) (de divas) (marroquinas.) (um outro) (de denso) (cavanhaque) (e nariz) (encurvado) (discutia) (platão) (e plotino.) (mulheres) (de seios) (rosados) (entoavam) (árias) (de concerto.) (havia) (pratos) (refinados) (de atum) (e salmão,) (garrafas) (de vinho) (espanhol) (e cheiro) (forte) (de fumo) (africano.) (eu era) (o rei) (do haxixe,) (até) (certo dia,) (quando) (fui surrado,) (como) (um) (escravo,) (cuspido) (e) (atirado) (para fora) (dos salões,) (como) (um corcunda,) (leproso,) (bufão.) (senhores,) (vejam,) (ali) (vai,) (célere,) (espavorido,) (o) (macaco) (cantante.)

     gavita, gavita. sim, está enfeitiçada, e fala ganidos. ela, minha bela, dona e dânae, minha flor amarela, meu bicho-da-seda, minha floresta. eu sou o teu dervixe, tua chuva de ouro, teu apache, teu urso polar. vem, deusa de tetas verdes, vem aos meus braços, como no tempo em que te conheci, na terra do gelo. você me dizia de países distantes, em que são servidos licores de pétalas de rosa. onde há carros floridos movidos pela mente, e macacos que entoam devotadas preces. eu enlaçava tua cintura delgada, e recitava o mantra dos jogos nupciais.

     para as estrelas de cristais gelados / as ânsias e os desejos vão subindo, / galgando azuis e siderais noivados, / de nuvens brancas a amplidão vestindo. mas agora soa apenas a sina da insânia, pretume, pedraria, pesadelo; desnudas deidades descartam os danados, riem dos duendes da demência. (sozinho,) (no rito) (intenso) (da nevrose,) (junto) (minhas cinzas) (no místico) (cinerário,) (ao som) (de brahmânicos) (sonidos.) (shiva,) (shiva) (nataraja,) (onde,) (em que) (lua) (ou pétala) (ofendi) (a memória) (de um deus?). (senhor) (dos dançarinos,) (quando,) (em que era) (noturna) (de infortúnios) (cometi) (os mais terríveis) (enganos?) (estas) (são) (as mãos) (de um) (criminoso,) (turco) (ou judeu.) (apedrejai-me,) (sim,) (apedrejai-me,) (para abreviar) (a minha) (longa) (miséria.)

     (vítor,) (houve uma ilha) (em que os homens) (e as mulheres) (andavam nus,) (e as árvores) (geravam) (pomos) (de ouro.) (filetes de água) (escorriam) (pelo verde) (limoso) (das rochas.)  (o sol) (de bronze) (festejava) (os ritos) (da primavera). (monolitos) (decorados) (com coroas) (de flores) (pontiagudas.) (oferecia-se) (aos deuses) (música) (de tambores) (e frutas) (saborosas.) (tudo era calma,) (beleza) (e languidez.) (tudo era dança, dança, dança.) (oh senhor) (dos rios) (que se encontram,) (em que distante) (esfera) (perdi) (a minha vida?)

     está enfeitiçada, sim, enfeitiçada, triste espectro que vomita estrelas. cega e surda, não escuta clamores; ordena traições e incestos; sorri dos servos fenícios degolados. crianças, esta ainda é a sua mãe. venham. vamos conversar. o nilo banha o egito, terra de escribas e papiros. o sena flui em paris, onde os poetas são jovens tuberculosos. o tâmisa tem o fog londrino como cenário, e abriga as ossadas de um famoso maníaco. o ganges nasce dos pés de lótus de krishna. é preciso lembrar das savanas e das estepes. das matas tropicais e dos desertos. dos míticos vulcões e das geleiras. é preciso conhecer o mundo.

     (eu quero sair do mundo.) (habitar outros pórticos.) (aprender) (idiomas) (sem vogais.) (há uma estrela) (de musicais) (estatuarias.) (há um espelho) (que reflete) (apenas) (minaretes) (de mesquitas.) (há uma moeda) (que mesmeriza) (tenores) (e contraltos.) (há uma lesma) (ou plasma) (que abraça) (os meninos,) (sorrindo) (truculenta,) (brutal,) (um riso) (azul) (de agonia.) (certa vez) (sonhei) (um livro) (infinito.) (suas paginas) (eram translúcidas) (como um espelho.) (as palavras) (brotavam) (como gotas) (de chuva) (borradas,) (sangradas) (no vidro) (do papel;) (as letras) (eram arcanjos) (desnudos,) (que cantavam) (em timbre) (agudo,) (numa) (voz) (escura,) (quase) (silêncio.) (eu sou) (talvez) (esse livro.)

     gavita, gavita. reclinada em seda e linho, lua minguante, no entressonho. seus caninos nivosos, torneados, como jóias de marfim. suas palmas, de rosácea; os clarões das unhas, e os olhos, corolas de hibisco. ela amava as valsas ingênuas, os realejos e tristes ametistas; o chá servido em baixela; o sabor do vinho branco; passear de braços dados, no largo do coreto. súbito, cai uma flor amarela, no tanque de água; ela sorri, e recorda quando a abracei, no jardim dos moura schiavo, lembra-se do que eu disse em seu ouvido, você é só encanto, encantamento, my love is as a fever, longing still. ela coloca meus dedos em sua boca e diz que eu tenho o olhar cigano de um nômade estrangeiro; e acaricia meus cabelos com os dedos finos, suaves, tão suaves. mas isso foi em outra aurora; agora apenas gira, desorientada, sem rumo nem prumo, sem ver-me ou ouvir-me, dolente e demente, enfeitiçada.

     ela é tão bonita como um sarcófago etrusco, espada sarracena, bi-ombo japonês. seus pequenos pés, que bocas febris e apaixonadas / purificam, quentes, inflamadas / com o beijo dos adeuses soluçantes. a boca, viçosa, de perfume a lírio, / da límpida frescura da nevada, / boca de pompa grega, purpureada, / da majestade de um damasco assírio. ela foi a minha máscara. ela é o meu fetiche. serei então o teu lacaio, teu pajem e eunuco. renuncio a minha vaidade, narciso despido de narciso. sou agora teu mendigo; serei teu diabo, teu criado, teu cão.

     gavita, gavita; minha fada e apsara; agora repousa, negra e magra, como galho seco; a pele tensa, de cervo degolado; os olhos turvos, de noite proscrita. estirada, como massa amorfa, ou bolo vegetal; os braços líquidos, de nereida; a voz desfeita, em careta torpe. esticada, como um animal ou coisa; atirada, não, colocada no caixão, digo, em seu leito de extintas exéquias. meninos, esta é sua mãe; vamos deixá-la em paz, é hora de dizer bonne nuit. venham fazer as orações, no oratório; em nome do pai, do filho, do espírito santo, amém. é preciso fechar bem as portas e janelas; reler um soneto de camões; beber o copo de leite; abocanhar o naco de pão; esquecer um verso no idioma páli; fazer-me treva; guardar o grito ancestral no livro de retratos.

     ela está enfeitiçada, e me apavora. eu sorvo sua treva, e afundo em visões de taumaturgo. insano, febril, como quem fuma visões de navios e cetáceos, desenho portais de estranhos labirintos, dragões de esquecida tapeçaria, sinos de catedrais submersas. vejo a noite decapitada. ouço a chuva que cai, tênue como o som de um cravo metafísico, remota sonata para medo e medula, no patíbulo das horas. recordo seus olhos de cravos e cravinas. seus olhos de uma tarde em setembro, quando havia um céu de seda e o apito do trem na estrada de ferro. eu via suas mãos crescendo como ventosas, os lábios de estilete, o corpo querendo voar. meninos morenos corriam na estação, sombrinhas e sobretudos criavam asas, uniformes e tabaco gritavam em cinza, um topázio virava uma estrela. esta foi a tarde azul da metempsicose.

     gavita, gavita. foi minha culpa, meu pecado, que invocou esse fado? terei perdido a luz de sua luz por uma absurda, obscura vaidade? eis o que os versos me deram, a ardente areia desolada, o rito absíntico do medo. abyssus abyssum invocat. soa a meia-noite; agora, devo cuidar dela. velar seu sono, na madrugada inquieta. abrir seus punhos mudos, para o repouso; repelir do leito a cabeça do lagarto; pendurar suas vestes, guardar caixinhas e estojos, enxugar sua face. oh, senhor dos caminhos que se bifurcam. penso, mais de uma vez, em fazer-me nada entre nadas; partir rumo à nebulosa, mas não posso. ela está enfeitiçada, e treme toda, torva e turva; é fera e fúria. sim, cuidarei dela, e sempre a amarei. um amor obsessivo e triste, amargo e amarelo.

(Do livro Cores para cegos. São Paulo: Lumme Editor, 2012)

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