terça-feira, 16 de julho de 2013

RELENDO CRUZ E SOUSA



Cruz e Sousa, em Broqueis e Farois, criou um vocabulário novo, como um verdadeiro taumaturgo morfológico: absíntica, nirvânica, tantálico, beethovínica, estradivário, torcicolosamente, entre outros neologismos, mesclados a outros termos, de laivos gongorinos: neblinoso, alampadário, flamívona, alabastrino, espumaroso, empurpuresce. Com esse grimoire de sortilégios e encantações, Cruz e Sousa conduziu aliterações (“suspira, sofre, cisma, sente, sonha”), anagramas (“areia úmida e miúda”), paronomásias (“torvas e turvas”, “gralha, grasma e grulha”), anáforas (“só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria”) e outras magias semânticas que podem ser colocadas, sem intenção filantrópica, ao lado das construções inusitadas de Kilkerry ou Sousândrade. No caso específico de Missal, escreve Aguinaldo José Gonçalves que “perpassa todas as páginas desta obra um movimento inebriante de imagens simbólicas, mescladas a um total clima de sonho e de sensibilização em várias dimensões”. O poeta de Nossa Senhora do Desterro seria o autor de “um estilo novo, uma linguagem inédita mais fluida, mais cheia de matiz, plena de alusões mitológicas e de envolvimentos fantásticos” (idem). É possível argumentar que Missal, embora seja uma obra revolucionária em relação ao realismo-naturalismo e à poesia parnasiana, e a despeito de fragmentos de notável modernidade pré-cubista, como Navios (“Praia clara, em faixa espelhada ao sol, de fina areia úmida e miúda de cômoro”), não pode ser comparada, no cenário internacional, a obras de maior voo inventivo, como o Igitur de Mallarmé ou Les chants de Maldoror de Lautréamont; no entanto, essa objeção se torna caduca frente a composições como esta, de Evocações:     

Sentirás no Asinino a imitação do teu Silêncio, a imitação da tua Sombra – sombra e silêncio d’espelho, sombra e silêncio refletidos do teu silêncio e da tua sombra, sombra e silêncio reproduzidos d’espelho contra espelho.

(...)

Vida do eu visual, do eu olfativo, do eu mental, do eu sensível, faz vida original, faz vida de temperamento, portanto, vida ingenitamente particular e nova, dirás tu na perfectabilidade da tua visão.

(...)

Sempre sol contra sol, sempre sombra contra sombra, sempre espelho contra espelho. Sempre este espelho – Homero contra este espelho – Virgílio. Sempre este espelho – Shakespeare, contra este espelho – Balzac, ou contra este espelho – Dante, ou contra este espelho – Hugo. Sempre este espelho – Flaubert, contra este espelho – Zola, ou contra este espelho – Goncourt. Sempre este espelho – Baudelaire, contra este espelho – Poe, contra este espelho – Villiers e contra este espelho – Verlaine. Sempre este espelho – Ibsen, contra este espelho – Maeterlink.

Notável, neste fragmento (Espelho contra espelho) – uma profissão de fé simbolista – o uso de recursos que seriam empregados, cerca de meio século depois, por autores como Gertrude Stein: a repetição hipnótica de frases ou palavras, com mínimas alterações ortográficas, fora de qualquer estrutura identificável de prosa ou poesia; a fratura sintática; o uso dos sinais de pontuação como intervenções de natureza gráfico-visual;  a enumeração caótica (no caso, de autores venerados do cânone simbolista, com destaque para autores da linha “sério-estética”, na definição de Edmund Wilson, como Baudelaire e Verlaine, com a incompreensível exclusão de Rimbaud e Mallarmé e dos poetas da linha “coloquial-irônica”, Corbière e Laforgue).  Um Cruz e Sousa distante das névoas parnaso-simbolistas, das imagens deliberadamente grotescas, da retórica sentimental, e muito próximo das experimentações semânticas das vanguardas das primeiras décadas do século XX, ainda não devidamente estudado por nossa crítica literária, tão avessa à contribuição simbolista.


Um comentário:

  1. E é de um mundonovismo Cruz e Sousa que ainda está à espera de resgate. É necessário a manifestação de leitores como vc, Claudio, para trazê-lo ao presente-futuro. Aquele abração.

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