domingo, 7 de abril de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (X)



Albano Martins – assim como Eugênio de Andrade – praticou a poesia breve desde os seus primeiros títulos publicados, como Secura verde (1950) e Outros poemas (1951-1952), sob o influxo da poesia grega (o autor licenciou-se em Filologia Clássica pela Universidade de Lisboa e traduziu poemas de Safo e Alceu), dos epigramas[1] e dísticos latinos, da quadrinha portuguesa e outras formas tradicionais, inclusive o terceto, como nesta composição incluída no livro Coração de bússola (1967): “A vida – essa invenção magnífica / da morte” (MARTINS, 2000: 44), revelando uma tendência “para a condensação, para a ascese vocabular rumo a um dizer essencial”, nas palavras do ensaísta português José Fernando Castro Branco, em seu livro Poética do sensível em Albano Martins (BRANCO, 2004: 51).  A busca da essência, ou antes dos “cernes e medulas” na expressão poética (para citarmos a conhecida frase de Ezra Pound), que no caso de Albano Martins deriva inicialmente de sua formação humanista, de sua predileção pela poesia greco-latina, se aproxima da arte verbal japonesa pela “concisão vocabular e estrutural inerente às duas situações” (idem), ao mesmo tempo que se avizinha dos procedimentos da vanguarda. A partir de Em tempo e memória, publicado em 1974, Albano Martins pratica uma escrita ainda mais concentrada, em consonância com as experiências construtivistas da época, desenvolvidas por poetas como Carlos de Oliveira em Micropaisagem (1969) e Haroldo de Campos em Lacunae (1969-1974) e Signância: quase céu (1979). Uma boa amostra da poética minimalista de Albano Martins encontra-se nestes fragmentos da terceira parte do poema Modulações:


3.

De inomináveis
obscuros,
refluentes
sinais
se tece
a polpa,
a medula
do espaço que habitamos.



*

O ritmo
do universo
cabe,
inteiro,
na pupila
dum verso.



*

Árvores
que me doem
na garganta
Quem as arranca?
Quem as planta?


*

Branco,
solúvel
veneno


ao rés
das pálpebras
arde
lento.


*

De lágrimas se molha
o tempo e a memória.

(MARTINS, 2000: 69-70).


Nesta composição, é notável o desenho sintático das palavras e frases, dispostas na página numa representação visual do movimento rítmico: “O ritmo / do universo / cabe, / inteiro, / na pupila / dum verso” (idem). Não há uma relação de continuidade referencial ou semântica entre as estrofes, que se combinam de acordo com o princípio da montagem ou superposição, como acontece na poesia japonesa. O elevado grau de abstração e subjetividade no poema de Albano Martins, no entanto, contrasta com a representação quase fotográfica do haicai, que busca o registro de paisagens e situações de contornos mais precisos – e recordemos aqui Haroldo de Campos, que no ensaio Visualidade e concisão na poesia japonesa afirma: “No pensamento por imagens do poeta japonês, o haicai funciona como uma espécie de objetiva portátil, apta a captar a realidade circundante e o mundo interior, e a convertê-los em matéria visível” (CAMPOS, 1977: 65). Albano Martins irá se aproximar desse princípio imagético/sensorial em outras seções da composição, como nesta pequena passagem:

Há folhas
no tempo
ainda verdes
ainda
à espera
dum
fictício
verão.

(BRANCO, 2004: 72).
Neste micropoema construído com apenas onze palavras, a simplicidade das “folhas / no tempo / ainda verdes” e a ação inusitada da “espera” de um “fictício verão” recordam algumas peças de Bashô, como esta composição traduzida por Paulo Leminski: “templo de suma / ouvi a flauta não soprada / debaixo das árvores” (in LEMINSKI, 1983: 56).  A representação da ausência, tão valorizada nas artes tradicionais japonesas, assim como os traços imprecisos, assimétricos ou inacabados na pintura, na poesia e na caligrafia serão elementos constantes na poesia de Albano Martins, que valoriza o espaço em branco da página, os cortes elípticos e o discurso paratático, em poemas cada vez mais condensados. A própria distribuição das palavras e linhas na página sugere a visualidade da escrita caligráfica, como acontece no poema Aproximações ao real:


Andaimes
para o vento:

nuvens.


*

Altas
e solitárias voam
as montanhas e as águias.


*


Pirilampos – acrí
licas vozes do sono.


*


Soltos ou não – quem pode vê-los? –,
de vento são os cabelos.


*

À laranja não
se lhe tira a casca,
mas o coração.

(BRANCO, 2004: 101).

Linhas breves, recortadas por sinais de pontuação e asteriscos, em que descobrimos nuvens e montanhas, águias e pirilampos, cabelos ao vento e laranjas descascadas, descritos com o mínimo de palavras, como se o poeta fosse um calígrafo japonês, que escreve o seu verso em rápidas pinceladas de nanquim sobre o papel. A concisão atinge o seu ponto máximo, talvez, neste poema de Sob os limos (1982):

*

De ciprestes
o templo

o tempo,

o cálcio,

a cinza.



Certifico o silêncio,
a podridão do vidro.


*


Das casas
a ruína
sem ruído


(idem, 131-132)


A última estrofe – ou micropoema – da composição sugere uma referência intertextual a um dos mais conhecidos haicais de Bashô, o primeiro que comparece entremeado à prosa de sua narrativa de viagem Sendas de Oku: “a cabana de ervas secas / o mundo tudo muda / vira casa de bonecas” (in LEMINSKI, 1983: 10). A similaridade temática e de procedimentos com a poesia japonesa, porém, não derivava – neste momento – de um diálogo consciente com a arte de Bashô e seus amigos, que Albano Martins então desconhecia[2]. Somente em 1992, quando publica o livro Entre a cicuta e o mosto (1992), a forma do haicai aparecerá na obra poética de Albano Martins, como por exemplo nesta série de poemas:


QUATRO QUARTETOS

1.

Se houve um paraíso, foi
depois, quando a maçã
foi mordida.


2.

A cabeça da lua
entre as coxas.
O sexo do luar.


3.

Solitários, solidários
ambos – Hermes
e Afrodite.


4.

A um passo
da luz fulguram,
grávidas, as espadas.

A primeira composição do conjunto não descreve um movimento ocorrido nas dimensões do tempo e do espaço, mas remete a uma hipótese de passado, redesenhando o mito do pecado original como metáfora erótica – tema desenvolvido nas peças seguintes, especialmente a segunda, a mais concisa e imagética do conjunto: “A cabeça da lua / entre as coxas. / O sexo do luar”.  Na terceira composição, aparecem personagens da mitologia greco-romana – Hermes e Afrodite[3] – que não participam de nenhum acontecimento, apenas expressam, simbolicamente, solidão e solidariedade. O  último poema, com sua imagem das espadas brilhando sob o sol, é a que mais se aproxima da imagética nipônica, apesar da presença do adjetivo que transforma o objeto visível em metáfora, logo, em pensamento. Os quatro poemas breves desta série, embora escritos na forma do terceto (sem divisão métrica), não guardam nenhuma proximidade com o espírito do haicai, forma poética indissociável da experiência vivida no tempo e no espaço.


[1] Paulo Leminski faz uma curiosa analogia a este respeito “Pela brevidade, o haicai guarda certo parentesco com o epigrama, a mais diminuta forma da poesia greco-latina, praticada no Ocidente durante o Renascimento e o Barroco” (LEMINSKI, 1983: 47), opinião compartilhada por José Fernando Castro Branco, para quem “se encontra no epigrama tudo o que de essencial caracteriza o haicai” (BRANCO, 2004: 51).
[2] Albano Martins declarou em entrevista a Baptista-Bastos: “... e se a minha poesia faz lembrar haicais japoneses (que todavia, é bom que se saiba, só tardiamente conheci), deixe-me lembrar-lhe que não são necessárias muitas palavras para dizer o amor, o deslumbramento, a paixão. Basta, às vezes, um oh!, um ah...” (BRANCO, 2004: 51-52).

[3] A mescla de referências na poesia de Albano Martins, como observou José Fernando Castro Branco, é capaz de conciliar “a ocidentalidade e a orientalidade, o espírito pagão e o espírito Zen” (BRANCO, 2004: 52).


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