sexta-feira, 29 de março de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (VII)


A observação rara, frequente na poesia de Bashô, está presente em várias peças de Pequeno formato, especialmente na última composição do volume, intitulada À sombra de Victor Hugo, que é quase um oxímoro: “A sombra é sempre escura até mesmo / a dos cisnes” (ANDRADE, 2000: 554). Além do “gosto das estruturas breves e simples, do poema, do verso, da frase” (SARAIVA: 1995, 38), encontramos na poesia de Eugênio de Andrade “as sonoridades cuidadas, os ritmos fluidos, a frase pontuada; o equilíbrio entre a simplicidade e o requinte da expressão (...); o apuramento dos sentidos; a revelação, a plenitude poética, o sentimento do tempo, o sentido do precário” (idem), elementos que estão em consonância com a arte poética japonesa, que valoriza especialmente a expressão sazonal, o vínculo entre o homem e a natureza, a imperfeição e a assimetria. Um outro aspecto da poesia de Eugênio de Andrade apontado por Arnaldo Saraiva e que merece especial atenção é a representação da epifania, palavra de origem grega (epi, sobre, phaino, brilhar) que o crítico português define como “uma luminosa manifestação, uma revelação clara e rara, uma clarividência essencial” (idem, 54). O conceito, de origem teológica, designava inicialmente “a manifestação ou o aparecimento divino no mundo ou a festa e o período que o celebra” (idem), como o nascimento de Cristo (caso em que o termo mais usado é teofania), aparições de santos ou outras entidades espirituais. Mircea Eliade, em seu Tratado de História das Religiões, define a epifania como “manifestação que lembra ou se parece com uma manifestação divina, uma experiência exaltante e inesperada, o súbito acesso a um conhecimento ou prazer essencial, a percepção nítida de uma verdade imprevista, um momento de inteligência global do real” (in SARAIVA, 1995: 53), como por exemplo as revelações obtidas em sonhos, transes xamânicos, experiências com alucinógenos místicos ou a iluminação zen-budista, estado que transcende a dualidade do mundo fenomênico e representa um retorno ao vazio original da mente. Conforme observa Antonio Saraiva, o conceito de epifania passou a ser empregado, na modernidade, por autores como James Joyce, num contexto laico e profano, para designar experiências estéticas de revelação e deslumbramento “perceptíveis pelos ou por alguns dos sentidos; não é uma experiência duradoura – é uma experiência intervalar e efêmera, salva na memória” (idem, 54). A poesia de Eugênio de Andrade revela “diversas modalidades epifânicas ou diversos tipos de narrativa epifânica”, escreve Arnaldo Saraiva (idem, 55). No poema Sul, que integra o volume O outro nome da terra, por exemplo, o poeta diz:


Era verão, havia o muro.
Na praça, a única evidência
eram os pombos, o ardor
da cal. De repente,
o silêncio sacudia as crinas,
correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim.

(in ANDRADE, 2000: 451-452)


Nesta composição de oito versos, sem medida métrica nem divisão estrófica, o poeta “documenta bem a passagem de um tempo e modo comum e concreto (verão, muro, praça, pombos, cal) para um tempo e modo epifânicos, que sem abolir a visão ou ‘evidência’ objetiva (‘assim’) implica, sobretudo, uma evidência, uma clarividência relativa ao sentimento ou ao pensamento escatológico” (SARAIVA, 2005: 56), o que acontece nas linhas finais do poema (“Pensei: devíamos morrer assim. / Assim: explodir no ar”). Em outro poema breve de Eugênio de Andrade, incluído em Pequeno formato, o registro epifânico é menos dramático que lírico: 


COMO NO INÍCIO

É a noite por fim, podes tocá-la.
Também a mão, a pequena e febril
música da mão, aí está a iluminá-la.
Agora vê-se melhor o caminho.

(in ANDRADE, 2000: 550)


A paisagem metafórica do poema, em que não falta o recurso da sinestesia (“É a noite por fim, podes tocá-la”), prescinde de um sujeito identificável; há um enunciador que descreve a sucessão de imagens e um receptor a quem esse discurso visual é transmitido, mas ambos permanecem quase invisíveis no poema, sem nada que os identifique além da própria enunciação. A epifania acontece no próprio discurso, em que elementos simples como a noite, a mão e a música se transfiguram para iluminar o caminho, que é trajeto, revelação e descoberta (podemos recordar aqui o ideograma chinês que representa o Tao, que significa, ao mesmo tempo, o caminhante, o caminho e o ato de caminhar).  Conforme observa Arnaldo Saraiva, “o fenômeno epifânico é sempre relacionável com o sujeito enunciador do poema, que interessadamente o assinala e acusa os seus efeitos, às vezes dentro do seu próprio corpo (‘subitamente como fonte ou ave / rompe dentro de mim); mas ele também pode implicar e afetar outros seres, árvores, bichos, a terra, o ar e até os nomes” (idem, 57-58). Nesta acepção, podemos relacionar o conceito de epifania com a experiência espiritual indissociável da prática do haicai, tal como compreendida por Bashô. Comentando o poema da rã, Alberto Marsicano escreve em sua introdução a Trilha estreita ao confim, que reúne os quatro principais diários de viagem do mestre japonês:


Bashô contemplou num harmonioso entardecer uma tranquila lagoa quando uma rã saltando sobre a água rompeu subitamente a lisa superfície. Não com um forte ruído mas com um som claro e distinto. Ao ouvir este som cristalino o poema fluiu quase que involuntariamente leve e simples, sem artifício algum. O haicai é o olho do furacão, o profundo toque de um gongo de bronze, o iridescente relâmpago que inesperadamente reluz na escuridão da noite. o haicai é o satori, o despertar zen que repentinamente surge no caminho.

ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante

(In Bashô: 1997, 11)


A experiência do satori, referida por Alberto Marsicano, é o objetivo da prática zen-budista: a tomada de consciência do vazio original da mente (sunyata) e a superação da percepção dualista do mundo, que nos leva ao desejo e à aversão, elos mentais que nos aprisionam ao mundo fenomênico. Como toda vivência espiritual profunda (os êxtases místicos de São João da Cruz ou de Santa Teresa de Ávila, na tradição cristã, ou a vivência do sagrado em Rumi e Attar, na tradição sufi, por exemplo), o satori não pode ser descrito em palavras; segundo Paulo Leminski, é algo “pessoal e intransferível, impossível de programar, prever ou administrar (o desejo de atingir a iluminação, inclusive, dizem, é o maior obstáculo para atingi-la)” (LEMINSKI, 1983: 68). Apesar da impossibilidade de se registrar na forma escrita as sensações e percepções da jornada espiritual, existe vasta literatura sobre o assunto, desde interpretações filosóficas ou teológicas da vivência mística até poemas ou relatos em prosa que de certa forma “transmitem” algo dessa experiência. Segundo relatos dos antigos historiadores chineses, técnicas indianas de meditação (dhyana, em sânscrito; ch’an, em chinês; zen, em japonês) foram introduzidas na China desde o século II a. C. por Bodhidarma, o primeiro patriarca do zen-budismo, e de lá foram levadas para a Coreia, o Tibete e o  Japão, mesclando-se com tradições locais como o taoísmo, o xintoísmo, o confucionismo, cultos devocionais e práticas mágicas ou esotéricas. O mestre mais reverenciado da tradição zen-budista é Hui-Neng, que teria ensinado no século VI no Mosteiro da Ameixa Amarela. A respeito deste sábio chinês escreve Paulo Leminski:


A assim chamada Doutrina Lanka de Bodhidarma foi transmitida por muitas gerações a Hui-Neng, homem de origem humilde, um lenhador analfabeto, ideias revolucionárias e duradoura influência. Nascido em Fan-Yang, a sudoeste de Pequim, Hui-Neng perdeu o pai muito cedo. E levava vida penosa, sustentando a mãe como apanhador e vendedor de lenha.

Aos vinte e quatro anos, vendendo lenha na cidade, ouviu alguém recitando o Sutra do Diamante, uma das escrituras hindus traduzidas para o chinês. Hui-Neng quis saber mais. Enviado a Hupei, submeteu-se à direção de Hung-Jen, o quinto patriarca, tornou-se monge e acabou superior do mosteiro Fa-Hsing, recebendo a dignidade de patriarca das mãos do próprio Hung-Jen.


Esta transmissão do patriarcado consistia na entrega do manto pessoal e da tigela de pedir esmolas.


Atuou por trinta e sete anos, atraindo os mais famosos mestres Zen da época, incluindo os quarenta e três ‘herdeiros da lei’, que disseminaram seus ensinamentos por toda a China, o Sudoeste Asiático, a Coreia e o Japão.


Do pensamento de Hui-Neng, chegou-nos um texto, “A Escritura Plataforma”, sermão pronunciado pelo sexto patriarca, no mosteiro Tan-fan.


De Hui-Neng descendem, espiritualmente, Bashô e seu haicai, bem como as artes zen, das quais o haicai se alimentou. (Idem, 78-79)



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