quarta-feira, 25 de julho de 2012

POEMAS DE ANTÔNIO MOURA


ALMOÇO NA RELVA

Do céu fechado
(semi-
círculo)
sobre o
lago
cai verde
uma gota de ave
— excremento —

abre n’água
cír          círculos
concêntricos

O lago, outro
círculo

verde
circundado
por mais verde avermelhado
pelo círculo do sol
poente

relva onde talo teso gramo

às portas do seu
triângulo jardim



FRIBURGO

A Washington Braun

Hibiscos.
Pequenos sóis terrestres em flor
à sombra da

montanha
encimada por

outra
flor: sol helianto

que desde a manhã
a este crepúsculo
muda cor

à rocha verde azul
púrpura agora
negra

Pedra do
Imperador


OUTRA MANHÃ

A Roque, Cláudia e José Antônio

Por detrás do verde monte
(não-verde-oliva
não-verde-musgo
verde-não-verde
não-verde-mar)

por detrás do verde monte
(não-verde-mata
ver de perto: entulho)
por detrás do verde-azinhavrado monte
de sucata, surge sujo

grafitado
— cicatrizes, placas, logomarcas
confusa cabala, restos de cartazes,
frases, chagas — crivado de balas

o
sol

e ao fundo
canto imaginário do galo
garganta
jorrando
do pescoço decepado
(gargalo)
ao esgoto escuro
o sangue
reencarnado:
outra manhã no mundo



NUMA ESTAÇÃO DO METRÔ, around
1916 d.C., a aparição das
faces na multidão, pétalas
num ramo escuro úmido,
dilata a pupila de Ezra,
enquanto outra turba
(a mesma?) se despetala:
um tiro (a esmo) desfolha
a bala a rosa da multidão,
numa estação do metrô,
1998 d.C.


APARTADO

Para
trás
está
emaranhada
a floresta

flor besta-fera
abrindo-se
ao hálito da serpente
tenebra

está a horda
de Calibãs,

clareira — aroma
de ervas

(Sempre nascente na fronte de um rio
O diabo aprisionado numa garrafa sobre a relva 


AS ARMAS ESTOCADAS

No quarto ao lado de meu silêncio
dorme a criança sem suspeitar do ar

que alimenta a violenta tosse da cidade,
durante o sono – monstros e rosnados –

um mercador de medos corrompe as
flores e lianas que buscam germinar

entrelaçadas à boca e ao cano dos fuzis,
a criança dorme, enquanto um arsenal

faz tic-tac tic-tac tic-tac tic-tac tic-tac
no fundo falso de um chapéu texano

que não vê diferença entre uma sentença
de morte e outra sentença, a do verbo criador,

senhor de mundos onde as pedras flutuam.
A criança dorme, dorme, enquanto suas chagas

são amargamente remendadas pelos laços
de família e os panos podres que abafam

o som das armas estocadas e o cochichar
subterrâneo do crime com as ideologias,

a criança dorme sem suspeitar que dia e noite
noite e dia as máquinas da morte trabalham 

fabricando assassinos  paralíticos deformados
cegos surdos mudos órfãos viúvas mutilados

e em promoções especiais – “compre uma
leve duas”, dá de brinde a vassoura da eugenia,

dia e noite, noite e dia, dia e noite, noite e dia
a máquina da morte vende a varejo – um tiro

para cada vivo – um dólar para cada morto, e
em forma de atacado um bem sortido genocídio,

a máquina da morte tem filiais em muitos países –
danger nas mãos de sacerdopatas e políticos ,

gnomos impotentes, que, no meio da noite
recalcados, levantam e apontam seu míssil

contra alguma pequena aldeia que acorda
da cama para em seguida deitar na tumba –

ossos e fragmentos que antes eras risos
espalhados pelo chão do bárbaro ofício 

No quarto ao lado do meu silêncio, só,
a criança dorme sem suspeitar de nada,

um gato listrado ao seu lado – sua alma


TRAVESSIA

Um dia para atravessar – sol
entre duas noites imensas,
tendo como companhia o corpo,
este pequeno animal que não
te pertence e que, sem nada
perguntar, se oferece, devotadamente,
ao tempo, deus que também é
o próprio corpo em silêncio
Um dia para transpor tendo por alimento
a poeira da estrada que se estende
branca, do nascente ao poente e
que, lentamente, transforma-se em
riacho negro que passa sob a
ponte suspensa da Via Láctea
Ir, à outra margem, de acordo
com o que a própria ida engendra
Ora com o silvo das serpentes sob o passo
Ora andando sobre as águas do poema

  
QUANDO

Quando a luz cegar o seu fio
de navalha que corta tudo em
claro e escuro, e esta sombra
já não tiver a centelha com que
dialogar alternando-se em sol
e lua, silêncio e palavra, terra
e céu refletido nas águas do rio que
arrasta a imagem das noites e dos dias,
quando por mero acaso repentino
ou ocaso lento e gradual romper-se
o fio de voz que traz o não e o sim
na mesma frase de ritmo imprevisível,
nada ao mundo faltará e nada se
abalará a este pequeno movimento
de asa, que, ao decolar, vibra,
imperceptivelmente, a folhagem

  
ESCREVER

Escrever para supraviver
por um momento, ou ser
inteiramente num instante
em que passado, presente
e futuro se fundem numa
chama única e transparente.
Escrever para ver num lago
branco o lado negro de Narciso,
luz e sombra velando-se e
revelando-se nas pontas do
sorriso – anjo-monstro, que
nas águas aparece refletido.
Escrever, riscar à carvão na própria
lápide o brilho cego de diamantes.
Escrever, morrer e aspirar, eterna
mente, a poeira de uma estante


 Antônio Moura (Belém 1964) é autor de Dez (1996), Hong Kong (1999), Rio Silêncio (2004), A Sombra da Ausência (2009).


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