quinta-feira, 4 de novembro de 2010

POEMAS EM PROSA (IV)

FRAGMENTOS DE OS CANTOS DE MALDOROR

Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta... acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se isso dependesse de minha vontade, teria preferido ser o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau. Vós que me encarais, afastai-vos de mim, pois meu hálito exala um sopro envenenado. Ninguém viu ainda as rugas verdes do meu rosto; nem os ossos salientes de minha fisionomia magra, semelhantes às espinhas de algum peixe gigante, ou aos rochedos que cobrem a beira-mar, ou às abruptas montanhas alpestres, que percorri muitas vezes quando tinha sobre a cabeça cabelos de outra cor. E, quando rondo as habitações dos homens, durante as noites tempestuosas, de olhos ardentes, cabelos flagelados pelo vento da intempérie, isolado como uma pedra no meio do caminho, cubro meu rosto abatido com um pedaço de veludo, negro como a fuligem que enche o interior das chaminés: não é preciso que os olhos sejam testemunhas da feiúra que o Ser supremo, com um sorriso de ódio poderoso, pôs em mim.

(Do Canto I)

Lá, em um bosque rodeado de flores, repousa o hermafrodita, profundamente adormecido na relva, molhado por seu pranto. A lua separou seu disco da massa de nuvens, e acaricia com seus pálidos raios essa doce fisionomia de adolescente. (...) Cansado da vida, envergonhado por caminhar entre seres que não se assemelham a ele, o desespero tomou conta de sua alma, e prossegue sozinho, como o mendigo do vale. Como obtém meios de subsistência? Almas caridosas velam de perto por ele, que não suspeita dessa vigilância, e não o abandonam: ele é tão bom! Ele é tão resignado! (...) Tomam-no geralmente por louco. Um dia, quatro homens mascarados, que cumpriam ordens, atiraram-se sobre ele, e o amarraram solidamente, de tal modo que só pudesse mexer as pernas. O chicote abateu seus rudes látegos sobre suas costas, e lhe disseram que se dirigisse sem demora para a estrada, que leva a Bicêtre. Ele se pôs a sorrir enquanto recebia os açoites, e lhes falou com tamanho sentimento e inteligência sobre as muitas ciências humanas que havia estudado, demonstrando tamanha instrução (...) que seus guardiões, assustados até a medula pelo ato que haviam cometido, desamarraram seus membros quebrados, prosternaram-se de joelhos, pedindo um perdão que lhes foi concedido, e se afastaram, com os sinais de uma veneração que não se concede ordinariamente aos homens.

(Do Canto II)

(Lautréamont, Os Cantos de Maldoror, in Obras Completas. São Paulo: Iluminuras, 1997. Tradução de Claudio Willer.)

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