domingo, 26 de setembro de 2010

UM ENSAIO DE MARIA ESTHER MACIEL

1. A tarefa moderna do poeta-tradutor

Desde Novalis – que associava o “alto espírito poético” à tarefa do tradutor – a tradução, vista como um trabalho também criativo, ocupou um topos especial na história da moderna poesia ocidental, tendo sido exercitada por vários representantes do cânone poético da modernidade, como Charles Baudelaire, Paul Valéry e Ezra Pound. Uma prática, aliás, que se intensificou ao longo de todo o século XX também na América Latina, graças sobretudo a poetas-tradutores como Octavio Paz, Jorge Luis Borges, Augusto e Haroldo de Campos, dentre outros.
Paz, como um dos primeiros poetas-tradutores latino-americanos a marcar a importância das traduções para o contexto poético e cultural de nossa modernidade, chegou a definir o século XX como o século das traduções. “Não somente de textos” – ele diz – “mas também de costumes, religiões, danças, artes eróticas e culinárias, modas e, enfim, de toda espécie de usos e práticas, do banho finlandês aos exercícios de ioga” (PAZ, 1993, p. 165). Mesmo reconhecendo que outros povos, em outras épocas, dedicaram-se à tradução de textos com paixão e esmero (a exemplo da tradução dos livros budistas por chineses, japoneses e tibetanos), ele atribui aos modernos a consciência de que traduzir é alterar, reafirmar o mesmo como outro, como diferença. A era moderna, segundo ele, permite-nos dizer que, se por um lado, a tradução suprime as diferenças entre as línguas, por outro, as explicita, convertendo-se em um exercício de “otredad”.É nesse sentido que Paz também trata o conceito moderno de tradução como um operador também eficaz no trato de várias questões, como a da relação dos poetas modernos com a tradição, a do diálogo e entrecruzamento entre as culturas do planeta e, mais especificamente, da cultura latino-americana com as culturas estrangeiras. Traduzir passa a ser também uma maneira de assegurar a continuidade de nosso passado ao convertê-lo em diálogo com outras civilizações, e de sustentar o fluxo de uma tradição, na mesma proporção em que a transforma.
Dentro dessa lógica, a tradição ou as tradições devem ser vistas em sua condição de mobilidade ou, como diz Haroldo de Campos, como uma “partitura transtemporal” (CAMPOS, 1993, p. 258) , nunca de cristalização. Do que se depreende que toda tradição viva é sempre outra e só tem assegurada a sua permanência no processo da memória (que, para Paz, é também criadora) e da recepção presentificada que, no caso, funciona também como uma tradução feita simultaneamente de desvios, repetições e transgressões. Como acrescenta Paz, “ao negar a tradição, a prolongamos; ao imitar a nossos predecessores, os transformamos. A imitação é invenção; a invenção, restauração” (PAZ, 2003, p. 147). Em outras palavras, toda tradição sobrevivente ou rediviva o é também em condição de novidade.

(Trechos do ensaio Desafios da tradução criativa: invenção, “transfingimento” e cruzamentos culturais, de Maria Esther Maciel. Leia o texto integral na edição de outubro da Zunái.)

2 comentários:

  1. É por meio desse conceito que procuro compreender a poesia contemporânea. O processo de tradução da tradição se insere nos procedimentos da linguagem hj, numa espécie de reciclagem dos materiais. Citação, colagem, homologia de formas, qualquer que seja o procedimento, creio q o q precisa ser avaliado é o nível da tradução no produto final, o poema e a coerência interna. Bjs!

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  2. Maravilhoso Claudio, obrigada por compartilhar!

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