quarta-feira, 18 de agosto de 2010

DESASSOMBRO

Severo Snape lê a poesia completa de Bruno Tolentino em aramaico

entre um gole de suco de abóbora

e um gesto teatral com sua capa preta.

Lord Voldemort bebe sangue de unicórnio,

escreve 65 sonetos neoclassicistas

e faz anotações em seu blog sobre a crise da poesia

na pós-modernidade.

Bombas de fósforo branco caem sobre Gaza, Bagdá, Beirute,

minas terrestres explodem em Luanda e Maputo,

indiferentes a discussões estéticas sobre Manuel Bandeira

ou o último desfile da São Paulo Fashion Week.

Poetas brasileiros imitam limitações de Drummond,

falam de lirismo e subjetividade,

e vão empilhando diminutivos e palavras singelas

no jazigo de CDA, como ex-votos.

Lucius Malfoy tem uma coleção de bonecas lésbicas estranguladas

em sua casa mal-assombrada;

aqui, poetas brincam de boneca, em total desassombro.

Die Narbe der Zeit

tut sich auf

und sezt das Land unter Blut -

Die Doggen der Wortnacht, die Doggen

shlagen nun an

mitten in dir.

("a cicatriz do tempo

abre-se

e afoga a terra em sangue -

Os dogues da noite das palavras, os dogues

atacam agora

bem dentro de ti").

Paul Celan acordou do pesadelo da história nas águas do rio Sena

sem nenhum desassombro.

Poesia é algo que faz as palavras cantarem

- não como alaúdes (ataúdes)

mas como nervos expostos da linguagem.

(Editorial do n. 10 da Zunái, publicado em agosto de 2006.)

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