sexta-feira, 18 de junho de 2010

UMA CONVERSA COM CLAUDIO WILLER (I)

Poesia como vertigem, experiência visionária, no limite entre vida e linguagem. A escritura não como reflexo do cotidiano imediato, em sua banalidade autoritária, mas como construção de uma realidade com sua própria morfologia do desejo, que não se distingue do sonho ou de estados alterados da consciência. A poesia surrealista é um território onde a lógica habitual, no campo do discurso e da ação, cede lugar à multiplicidade de outras formas possíveis de composição de cor e som, idéia, forma e movimento. Nesta entrevista, o poeta, tradutor e ensaísta Claudio Willer, um dos principais nomes do surrealismo no Brasil, comenta sua trajetória poética, sua visão de um mundo fragmentado e faz a defesa dessa estética alucinada que não distingue a arte da magia, o sonho construído da fugaz realidade.

Claudio Daniel: Qual é o sentido de escrever poesia hoje, numa sociedade regida pela mídia e pelo mercado?

Claudio Willer: Precisamos ser claros ao usar a expressão “hoje”. Hoje é quando? Há 150 anos, Baudelaire já transmitia a idéia do poeta como ser à parte, isolado e marginalizado na sociedade de massas, o albatroz obrigado a levar vida pedestre, como naquele poema de As Flores do Mal, e em tudo o que ele escreveu sobre a vida na metrópole. A contradição poesia/sociedade (sociedade burguesa, industrial, pós-industrial, de massas, de mercado, midiática, o que for), já foi claramente estabelecida no Romantismo, e não mudou em sua essência, a não ser pelo fato de a sociedade burguesa, hoje, ser menos fechada, mais permeável. Por exemplo, você não tem censura direta, não toma processos por escrever poemas — e este é um avanço recente. Aliás, sempre houve, na civilização ocidental, tensão entre poesia, descontado o beletrismo eloqüente, e sociedade — basta lembrar que Camões foi em seu tempo criticado, excluído, visto com desconfiança por suas inovações, e só depois convertido em nosso autor mais canônico. Isso, entre tantos outros exemplos.

CD: Sim, podemos considerar que esse “hoje” começou em 1789, quando o Bispo e o Rei cederam o assento ao fabricante de vinhos ou cortiça e aos futuros especuladores financeiros. Nesse período, que evoluiu da guilhotina à internet, surgiram diferentes idéias sobre por que fazer poesia. Para alguns, ela é uma ferramenta para mudar o mundo; para outros, é um severo exercício estético, que se justifica na própria escritura; alguns querem que a poesia altere o comportamento social, influencie outras mídias ou o idioma, e outros acham que a poesia, realmente, não serve para nada. Em sua opinião, por que escrevemos poesia, atividade que consome tempo, inteligência, esforço e que não interessa a quase ninguém, além de nós mesmos?

CW: Exatamente. Romantismo é um produto da mesma configuração de que faz parte o Iluminismo. Um de seus componentes. Possível a partir do momento em que destamparam a panela – que aliás continua sendo destampada, o processo não se encerrou, e nele a rebelião individual desempenha um papel decisivo — com a queda dos absolutismos e do poder temporal da Igreja. Queda dos absolutismos, não — redução considerável, não simplifiquemos as coisas. Poesia consome tempo? Pois então, é um bom modo, bem prazeroso, de consumir tempo. Olha, se poesia não me proporcionasse um certo nível de prazer, de satisfação pessoal independente de resultados como a repercussão, eu não mexia um dedo sobre o teclado ou segurando a caneta para fazer isso. Em segundo lugar, “nós mesmos” é bastante gente. Dirigimo-nos a pessoas que partilham um código, ou um mesmo repertório, sei lá. E, é evidente, a poesia se projeta, tem um resultado exterior à subjetividade do autor, embora saia de dentro dela. Em caso contrário, seria um solipsismo, escrever para o próprio umbigo, para sua imagem no espelho. Seria paranóia aguda, galopante, alguém se pôr a escrever para ser Dante, Camões ou Baudelaire, isso, citando exemplos mais evidentes de autores cuja poesia se projetou, constituiu cultura, portanto, produziu realidade. No entanto, concordo, tanto quanto concordava a primeira vez que o li, décadas atrás, com o trecho de Octavio Paz, em O Arco e a Lira, em que ele diz que a poesia, sendo histórica, produz história.

CD: Como é o seu processo criativo? A escrita automática, método de composição do surrealismo, ainda é válida?

CW: Claro. Com a ressalva que Aragon já havia feito no Traité du Style, nos anos 20, de que um imbecil, se fizer escrita automática, irá escrever imbecilidades. Procedimento algum, em si, garante nada. Mesma coisa que com alucinógenos, conforme já repeti inúmeras vezes: o fato de Henri Michaux ter produzido obra importante sob efeito de mescalina não significa que alguém, por tomar mescalina, vá escrever Miserable Miracle. Quanto a meu processo criativo, é mesmo espontâneo. A frio, do tipo “vou escrever um poema”, não dá, não sai nada. Tem que haver entusiasmo, no sentido grego da palavra, como embriaguez ou possessão, ou, no mínimo, inspiração. Um dos poemas que saíram publicados naquela edição de Azougue em que figuro, Ruínas Romanas, eu estava lá, e me vi impelido pela emoção a tirar um bloquinho do bolso e ir escrevendo. Nem reparei, mas estava fazendo um comentário à quantidade de autores, de grandes poetas, que já haviam estado lá e escrito sobre essas ruínas — alguns, eu nem conhecia então. Aliás, tudo o que fiz em poesia saiu mais ou menos assim, de impulso. Note bem, não se trata de adesão a “escolas” ou cartilhas, mas do seguinte: aquilo de que André Breton fala no Primeiro Manifesto, das imagens poéticas que batiam na janela, comigo é assim, uma frase, no caso desse poema de que estou falando, a frase “quantos poetas já não estiveram aqui?”, daí para a frente, o texto vai saindo espontaneamente, quase por si só, por sua conta. Aliás, essa experiência, poesia como voz do outro, nem é patrimônio exclusivo do surrealismo, basta ver o que, por exemplo, Derrida escreve a respeito naquele seu ensaio sobre Edmond Jabés em A Escritura e a Diferença.

(Continua)

2 comentários:

  1. Luiza, publiquei essa entrevista no site Popbox há uns dez anos; vou republicar, em "capítulos". aqui na Pele de Lontra...

    há braços,

    CD

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