sábado, 26 de junho de 2010

DONA VIRGO (III)

Non me posso pagar tanto do canto das aves nen de seu son, nen d’amor nen de mixon, nen d’armas. Ah, Afonso X, que bem sabia trobar! Cantigas compôs à Santa Maria, Don Pelegrin, a la Madona col bambino, mulier vestida de sol, coroada d’estrelas; e, por sua fé, do mouro tomou Granada. Eu não sei mais cantar, meu amigo, e por que cantaria? Já eu non ei por quen trobar e já non ei en coraçon, por que non sei já quen amar. Sem a fremosa dama louçana que me doma, zero a soma, perco tudo e resto mudo. Pensei: que fazer para limpar o coraçon, para merecer o amor da núbia, o nímio dulce amor da minha núbil fada? E, per Nostro Senhor, resolvi caminhar até Santiago, seguir a ninféia ribeirinha, madona oriana négresse, com sincera devoção, com délicatesse, pois nada mais desejo, digo em minha prece, além do olhar da bela, que bailou entre as flores. Com’ antr’ as pedras bon rubí sodes antre quantas eu vi. No dia seguinte, pus-me na estrada, em direção a Pontevedra; e lá aconteceu algo estranho e raro, que non direi, que non direi, que non direi.

* * *

Peç’eu tant’a nostro senhor que mud’êsse coraçon. E caminhei sobre pó, paus, pedras, galhos, folhas, fezes, orando, cantando e meditando, assim: Pater noster qui est in coelis, santificetur nomem tuum, adveniat regnum tuum, fiat voluntas tua, sicut in coelo et in terra, pelo bem de minha alma, para o perdão de meus pecados. Após muito andar, Don Pelegrin, fui ter a uma aldeia curiosa, cujos moradores eram surdos ou mudos, pois dizer nada diziam, nem pá nem bá, e, parece, não ouviam, nem sequer me viam; só me restava conversar com as árvores altas. Então continuei a viagem, meu amigo, e, na estrada enlameada, ouvi um som atrás de mim; virei-me, e vi um cervo com chifres de prata correr atrás da moita. Segui o animal, mas, em seu lugar, achei um eremita, Matusalém em rugas, trapos em nesgas de tufos, de finos cabelos brancos, a coxa esquerda chagada, e ele me olhou sem dizer nada. Sem saber o seu nome, abri minha sacola, para fazer-lhe um curativo, quando o anacoreta desapareceu, e, em seu lugar, surgiu uma senhora linda, de loura e longa cabeleira, angélica aparição de nívea face, que me disse assim:

— Dom Gil, vá em paz, que o abençoe Nosso Senhor. Evite o Ogre-que-Não-Diz, a fera-oh-fúria.

Dizendo isso, a alva dama anja sumiu, e deixou-me assombrado. Por dias e noites, em veredas várias, andei e andei, sem nada encontrar, às vezes dormindo sobre o ventre da terra. Certa manhã, após lavar-me no riacho, encontrei uma niña judia de Tetuán, que assim cantava:

Desde hoy la mi madre, la del cuerpo lozano, tomeris vos las llaves, las del pan y del vino. Que yo irme queria a servir buen velado, a ponerle la mesa, la del pan y del claro. Para hacerle la cama, y para echarle a mi lado, y atana y tanaora que sea en buena hora. Y atana Y tanataile que sea en buen simane.

Interpelei a dona hebréia, dama macabéia, sobre o seu triste cantar em tão bela modinha, e ela me respondeu:

— Eu sou Rebeca, a que casou com Salomon, o cantor, filho de Natanael; a niña lozana de longas tranças, que sabe fiar e cozer. Ai, caro senhor, o meu marido está mudo! Ele não mais pode cantar os meus olhos, os meus cabelos, ao som de guitarra e tambor, nem sussurrar em meus ouvidos, à noite, doces palavras, enquanto aperta os meus seios, nem pode ouvir o que lhe digo, nem sequer ler a Torá, na sinagoga, nos shabats; ai, meu senhor! Não vá ao bairro Moureira, à capela de São Roque, pois esse lugar é o covil da besta olhos-de-chama, do Ogre-que-Não-Diz, que a todos encanta e engana. Por onde ele passa, os homens ficam mudos, as palavras somem dos livros, páginas e páginas em branco; os cães não ladram, os pardais não chiam, os corvos não crocitam, os burros não zurram, as ovelhas perdem o balir. Tome seu caminho, se és judeu ou gentio, e vá para longe, pelo seu bem e de sua amiga. Dito isso, ela voltou a cantar sua toada, depois lavou os seus cabelos, e, sem me dizer outra palavra, partiu, como se não houvera nada. Tentei chamar a moça judia marroquina, pois ela esquecera, ou deixara, uma carta quadrada sobre a pedra em que se lavara; como não me ouvisse, guardei a prenda, caso a visse novamente, e voltei a caminhar pela estrada. O sol arde, arde como viva brasa, os pés e as costas dóem, e, para me distrair, e alimentar a alma, tirei do bolso a Imitação de Cristo, de Kempis, o cônego regrante de Santo Agostinho, e fui lendo ao acaso, em voz alta, enquanto andava.

Considera o que te dizem, sem se importar com quem o diz. Os homens passam, mas a verdade do senhor permanece para sempre (Sl 38,7; 116,2). Deus fala-nos de diversas maneiras, e por mui diferentes pessoas. (...) Pergunta de boa vontade e ouve em silêncio as palavras dos santos; e não desprezes as sentenças dos velhos, porque não as dizem sem causa.

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