sexta-feira, 25 de junho de 2010

DONA VIRGO (II)

Bernaldo, Bernaldo de Bonaval, o segrel, já senil, louvara em verso dama de má fama: a dona que eu am’ e tenho por senhor amos-trade-mh-a deus, se vos en prazer for, se non dade-mh-a morte. Quem ama a alma evita a lama, mas, no amor às donas, tudo é cegueira, loucura, pandemônio. Só o coraçon pensa, mal de Provença, e o dom da dor assoma, purga e adensa. Pera que demo queredes puta que non á mester?, cantou em escárnio Pero da Ponte, o infançon, que aprendera a arte de Bernaldo, mestre do bom cantar. Pero da Ponte, êh, ah!, o bardo bastardo, bebum blasfemo, femeeiro, faminto, fementido, Pero pervertido, é dele que fala Afonso X, o sábio, que o expulsou de sua corte por ser (segundo se dizia) mau poeta, ladrão, bêbado e assassino: En mao ponto vós tanto bevestes. Mas, quê! O senhor acredita? Pero, puro, não, mas poeta, sim, e dos bons: abusava do copo? Não sei dizer, mas ele assim trobava, meu amigo: senhor do corpo delgado, en forte pont’ eu fuy nado! que nunca perdi cuydado nen afan, des que vos vi. En forte pont’ eu fuy nado, senhor, por vós e por mi!

Enfim cheguei ao hotel, Chastel D’Avignon, mon chévalier, todo nanquim-espelhado, em modern style, o luminoso alumínio e o opaco acrílico em sua entrada, sauna-piscina-american bar. Fui ao restaurante, La Cuisine de Lacan, e pedi arroz integral, sopa de legumes, torta de queijo e um suco de uva espumoso. No salão, adocicado por Vivaldi, vi turistas suecos, japoneses, brasileiros, eslovacos, poloneses e uma alemã de seios pontudos em saia de couro dark e cabelos cor-de-rosa que lia Schopenhauer. Depois de jantar, sem sono, resolvi dar uma volta pela cidade. Fui à Taberna Montemor, meu senhor, branca casa de pedra erma do tempo de el-rey Dom Afonso, onde se bebe boa cerveja em mesetas toscas circundadas por azulejos azuis, decorados com motivos de marinheiros e monstros do mar. Ali encontrei Carlos Cazali, o fotógrafo, e perguntei a ele se vira a moçela, a meninha de olhos verdes:

Digas-me mandado de mia senhor, ca se eu seu mandado non vir’, trist’ e coitado serei; e gran pecado fará; se me non val. Ca en tal ora nado foi que mao-pecado! Amo-a endõado, e nunca end’ ouvi al!

Ele me respondeu assim:

— Vera? Oh, sim, Vera Veiga, a irmã siamesa de Veneza, top model da Stylus, ela tirou fotos em Vigo, para uma revista, mas isso foi há dois dias, e já foi embora, meu caro.

— Ah, dame sans merci, magra maga mulata, maja naja noir em boá de marabu, em popeline, cambraia, musselina; dama em adamascado, dalmático, debrum, merino, gonflé, godet, matelassé; seminua em papel couché, formato tablóide, o rosto ovalino na capa, suas pálpebras cetinosas, os olhos manhosos, a tez de anoitecer em Marrakesh.

— Ela ia a Pontevedra, e de lá para Compostela, você sabe, a Via de Santiago. Tome conosco um copo de cerveja, e mais um, e mais outro! E eu disse para mim, ao meu coraçon: vai, esquece essa nega galega, niña nagô, núbia dúbia, boca-de-mandinga, e vamos encher a cara! E depois, ah, depois? Posso sair, dizer alô a um poço, ficar de quatro, roer um osso. É isso, seu moço?

Frei Leonardo, o goliardo, o glutão, o gargalo-de-garrafa, per nostro senhor, falou assim para mim:

— Ora, pois! deixe essa mera megera, o amigo deve é sair com uma boa putana, com uma fulana de olhos sacanas, loura ou preta, de fartas tetas!, e cantou, em bom latim: Veni, domicella, cum gaudio, veni, veni, pulchra, iam pereo! Oh, oh, oh!, e cantou, também: Ave, formosissima, gemma pretiosa, ave, decus virginum, virgo gloriosa, ave, mundi rosa, branziflor et helena, Venus generosa.

E celebrou sua eucaristia, o monachus maroto: do vinho madeira, fez sangue de Cristo, do pão italiano, carne de Madalena, púbicas melenas, madeixas de morena, in nomine pater, filius et espírito de porco, amém.

Nós três comemos, bebemos e cantamos até a madrugada, a nossa mesa sempre cheia de grossas fatias de pão, queijos, carne de carneiro, cerveja e vinho, meu amigo. Éramos a tríade do érebo, da glacial geena. Frei Leonardo, o pândego infançon, contou-nos seus amores por uma nívea-blonde-meninha, moça-flor carismática, fremosinha de sacristia, em seus lácteo-nectáreos quinze anos, que muito ofereceu e pouco cedeu, entre cantos de salmos e contas do rosário. O caso valeu ao réprobo frade censura episcopal e ameaça de expulsão da ordem; o cônico conego blasfemou conosco a genealogia do bispo geriátrico, e, de ofensa em ofensa, cantou: Nunca se Deus mig’averrá, se mi non der mia senhora; mais como mi o corregerá? destroia-m’, ante ca morra. om’é: tod’aqueste mal faz, como fez já, o gran malvaz, en Sodoma e Gomorra. Ei-lo agora ante nós, libertino sem batina, bonachão sem credo. Carlos-Cazzo-Cazali, o viúvo das esposas que não teve, Dom Juan imperito de mucamas de madamas, é o colecionador de nomes para o albergue-de-vênus de suas mimosas moçoilas: paqueta, pagode, pandora, viola, violinha, violeta d’amore. Carlos, mercenário de kodak, longa barba alaranjada, jaqueta de brim, óculos escuros, foi fotógrafo de moda, cobriu a guerra da Bósnia, clicou defuntos em tiroteio e piranhas do meretrício. Eu o achava vulgar, mas ele fez fotos para a Stylus, e o suportei pela dica da sina de mia dona. Saímos da taberna, às cinco horas da manhã, sob chuva finíssima, e fomos à praça Dom Dinis; sentamos num banco de pedra, em frente ao chafariz netúnico-ninfático, e a garrafa passou de mão em mão, entre risadas e piadas obscenas, até que Carlos Cazali fez um desafio, propôs uma tençon, e aceitei a contenda. O vilão começou, cantando:

Gil Eanes Brás morreu con amor en seus cantares, par Santa Maria, por ua dona que gran ben queria; e, por se meter por mais trobador, por que lh’ ela non quis (o) ben fazer, feze-s’ el en seus cantares morrer; mais resurgiu depois ao tercer dia.

O frei riu, o gajo riu, os dois riram, riram de prazer de pilhéria, mas eu, Gil Eanes, respondo bá com bá, e bi com bi, e respondi:

Carlos Cazali, parou-se-vos mal: per ante o demo do fogo infernal, por que con Deus, o padre spirital, minguar quisestes, mal per descreestes? E ben vej’ ora que trobar vos fal, pois vós tan louca razon cometestes.

E o tzigano mundano disse-me então:

Esto fez el por ua sa senhor que quer gran ben; e mais vos en diria: por que cuida que faz i maestria, enos cantares que fez, á sabor de morrer i e des d’ar viver. Esto faz el, que x’o pode fazer, mais outr’ omen per ren nono faria.

Ah, Carlos-sabugo, rebento-refugo, digo-lhe isso:

— E pois razon a tan descomunal fostes filhar, e que tan pouco val, pesar-mi-á en, se vos pois a ben sal ante o diaboo, a que obedeecestes. E ben vej’ ora que trobar vos fal, pois vós tan louca razon cometestes.

O gaiteiro, então, ao final da tençon, sacou navalha escocesa; não sou adamado, meu bom amigo, peguei a garrafa, quebrei-a, encarei o canalha; mas frei Leonardo, acordado do porre, num salto pôs-se entre nós, e tudo ficou acabado. Após o embate, voltei ao Chastel, sem prez nem joy, sem Deus, dom ou dona; e enojei-me de Gil, o porco, traedor, imigo de mim, per mia malaventura.

(Continua)

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