domingo, 25 de abril de 2010

UMA CONVERSA COM JOÃO MAIMONA

“O traço fundamental de um inventário possível reside no uso de uma linguagem que resulta das formulações fragmentadas da língua diária. (...) Pode assim dizer-se que poesia é o espaço privilegiado para redimensionar o diálogo com o mundo. É o único espaço onde é visível a dimensão interior da palavra.” João Maimona, uma das vozes mais inventivas da poesia contemporânea em Angola e uma das referências mais fortes para os autores que estrearam a partir da década de 1990, conversa com Abreu Paxe sobre o seu processo criativo, sua mitologia pessoal, suas leituras e o ambiente literário no país africano, que hoje desenvolve uma das literaturas mais expressivas da língua portuguesa. João Maimona é médico veterinário, professor, poeta, militante político e parlamentar. Sua formação literária e cultural, como observa Paxe, mescla influências europeias, e em especial portuguesas, francesas e belgas, com a herança bantu. É um poeta “da fronteira”, que consolida, conforme a definição precisa de Gilbert Durand, “as estruturas antropológicas do imaginário”. Em livros como Idade das palavras (1997), Festa de monarquia (2001) e Lugar e origem da beleza (2003), o poeta cria um fascinante idioma particular, em que as imagens, metáforas e sua dicção única alteram o sentido habitual das palavras e sua relação com o mundo, explorando novas dimensões da sensibilidade e da imaginação e criando novas realidades poéticas.

Zunái: Ao olharmos para os títulos de seus livros, incluindo o de teatro, temos a sensação de que você busca a mudança, de que algo precisa ser reiventado, transformado, alinhado. Você dá nomes novos aos sentidos que perceberíamos da mesma forma; são os casos de Trajectória obliterada, Traço de união, Diálogo com a peripécia, As abelhas do dia, Quando se ouvir o sino das sementes, Idade das palavras, No útero da noite, Festa de monarquia, Lugar e origem da beleza, O sentido do regresso e a alma do barco. Fale-nos da textura desses títulos, que estruturam, sem obliteração, a sua obra artística.

João Maimona: Entrei no mundo da literatura com um sinal de esperança no rosto propondo o título TRAJECTÓRIA OBLITERADA. Com esta coletânea de textos acabava de iniciar uma digressão que considero, hoje, suficientemente maravilhosa com sentido de rigor e perspectiva crítica; pude reunir uma dezena de títulos que apresentam um conjunto paisagístico com pormenores de mensagens… Da realidade de construção/destruição ao tecido de alegria /pessimismo, passando por instantes vazios/plenos e até de inesperadas congruências. Ao longo dessa viagem, procurei orientar os meus passos para a aquisição de instrumentos linguísticos em constante transformação. A magnitude da minha gramática da criação encontra seu suporte na intimidade que procuro manter com a imagem que vem do cotidiano, através de um olhar lúcido e sem ambiguidade. Uma boa parte dos textos que conformam estes títulos parece celebrar o capital que inventei. Para sustentar o que acabo de afirmar, tomo a liberdade transcrever na íntegra a nota do autor livro LUGAR E ORIGEM DA BELEZA:

Fidelidade gramatical oblige, procurei revisitar a minha obra poética. Na pequena história da arte moderna, o que ofereci à sociedade, descobri uma odisseia textual. Redescobri as vias e as árvores – paisagem que sugerem uma esperança crescente. Redescobri também a presença do véu.

A greve e o repouso dos navios. E veio o sentido da musicalidade. A multiplicidade de exemplos de adjetivação, patentes na minha obra, reafirmava o meu desejo de concretização de um projeto com função gramatical: homenagear, em percursos da expressão sugestiva da metáfora, da metonímia e do símbolo, um magnifico tempo verbal: o pretérito imperfeito do indicativo. E decidi oferecer à sociedade, por escrito e em universos poéticos, este LUGAR E ORIGEM DA BELEZA.

(...)
Zunái: Como falar de poesia ou o que é poesia? Qual das formas prefere, para tratar de um assunto tão sério como é a poesia, vista numa cultura em que com um traço de união ela se vai libertando gradativamente do papel?

João Maimona: Poesia: um quadro de fascínio. O fascínio da aventura no bom sentido. O ensejo de elucidar o dever de memória. Caminhos para uma tentativa de resposta. Pode assim dizer-se que poesia é o espaço privilegiado para redimensionar o diálogo com o mundo. É o único espaço onde é visível a dimensão interior da palavra. É o único espaço onde é palpável a hierarquia de estruturas verbais. Infelizmente, hoje em dia, pouca gente lê poesia. As editoras viraram as costas à poesia. As editoras africanas conseguem fazer a diferença. Os títulos felizes são divulgados com uma tiragem elevada: mais de mil exemplares; o que é raríssimo na Ocidente. Eu continuarei a afirmar que o futuro da poesia universal está em África. O continente negro aparece com propostas poéticas fascinantes.
(...)
Zunái: Como leitor, acredita que a poesia em Angola ainda acontece ou ela está parada no útero da noite e no propalado empobrecimento criativo evidente em parte nalguns poetas, ou pensa ainda que a quebra das tertúlias e a ausência de revistas literárias terá contribuido para tal situação? Que opinião tem sobre a poesia hoje?

João Maimona: Em Angola, existe uma paisagem poética que atrai simpatias de leitores de diversos horizontes. Conheço poetas que cultivam a vontade de compromisso com a estética. São poetas portadores de textos que estão à altura dos novos tempos. Têm a preocupação de reinventar a palavra. A insuficiência de culto na produção literária traduz apenas uma parte da realidade de animação cultural no país. Todos aqueles que assumem a relação com a literatura devem optar por uma inversão de percurso. Isto é sair de um percurso de apatia, um percurso de inércia para um percurso de participação ativa, um percurso de combate no universo de animação cultural. Acredito plenamente na inversão de percurso. Em breve, teremos espaço para a divulgação da literatura de ideias.
Zunái: Será que a poesia em Angola e a literatura, de uma maneira geral, tem espaços para a sua divulgação? O que pode falar da relação, por um lado, poesia e ensino e, por outro, poesia e media, esta última agravada com a atitude da atual direção do Jornal de Angola de suprimir o suplemento Vida cultural?

João Maimona: A poesia em Angola faz parte das mais belas manifestações do registo histórico do olhar. Reconhece-se um sentido de divulgação da poesia. Reconhece-se um sentido de crescimento em termos de produção. Reconhece-se um sentido de vontade de desenhar uma nova geometria, uma nova história: a ruptura com traços convencionais. O instante é de inovação. Lamentável é o fato de a intellegentia angolana não dispor de espaços para a divulgação da literatura de ideias. Desapareceu o suplemento cultural do Jornal de Angola que aparecia como um autêntico vetor de comunicação. Um elemento unificador no universo das diferentes formas do comportamento social.

Zunái: Sente-se realizado como poeta, ou será que depois desse edificio poético que ostenta só atingiu o zero (A. Neto), para começar a celebrar o lugar e a origem da beleza?

João Maimona: Uma pergunta simpática que me leva a falar do meu percurso. É uma história que se inicia com as leituras de Paul Claudel, Saint Jonh – Perse, René Char, Eugénio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Tchicaya U Tam Si e António Jacinto. Leituras que fizeram com que eu adquirisse um choque poético. É na decada de 70 que começo a dialogar com a palavra poética. Assim fui andando, conciliando os estudos de medicina veterinária, a atividade profissional e o trabalho de pensamento. Eu diria que me sinto feliz. Por ser uma referência obrigatória da literatura angolana. Por ser um expoente da poesia elegíaca. Por ter sido considerado o melhor poeta surgido no pós–independência. Por ser uma voz nova, uma nova postura, uma nova visão que entraram direito na poesia angolana. Fui falando e retomando palavras de outras vozes sobre a minha obra poética. Agora diria que me sinto feliz por ser criador de palavras e imagens que apaixonam. Graças à poesia, sinto-me colocado numa estrada que me permite olhar para o mundo e para os homens que o constroem.
(Trechos da entrevista que Abreu Paxe fez com João Maimona para a edição de maio da Zunái, aguardem!)

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