sexta-feira, 6 de novembro de 2009

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (III)

UMA VIAGEM AO IMAGINÁRIO DE HORÁCIO COSTA

Ravenalas é o mais recente livro de poemas de Horácio Costa, publicado pela editora Demônio Negro. A obra reúne peças escritas entre 2004 e 2008, inseridas na ordem cronológica em que foram escritas, e não agrupadas em séries temáticas ou estilísticas. No prólogo escrito para a obra, diz o autor: “Há núcleos temáticos, formas e sentidos recorrentes, nexos, reaparições, que o meu leitor estabelecerá com outras partes de minha obra poética, ou mesmo crítica: ça va de soi. O que me propus fazer ao dispor estes poemas em forma rigorosamente cronológica é arriscar deixar claras às descontinuidades, a porosidade do (meu) processo poético, sua irremissível desorganização, sua lacunaridade; deixar claro, enfim, o seu, digamos, intrínseco babelismo”.

Temos aqui, portanto, um roteiro de viagem, ou ainda a exposição da oficina de trabalho do poeta, como se ele nos mostrasse um pouco do seu processo criativo, anterior à edição e montagem que ele realizou em seus títulos anteriores. Diz ainda o poeta, no prólogo: “Exponho tanto os poemas, que, obviamente, falam entre si e com o restante de minha obra, e com o ‘arquivo’ da literatura e não só dela, claro, mas focalizo também os espaços entre eles, em termos temporais e poéticos”.

O que caracteriza o processo de criação deste livro, portanto, não são apenas os deslocamentos entre temas, releituras intertextuais e procedimentos estilísticos, mas também uma marca pessoal mais acentuada, uma aproximação maior entre poesia e vida, texto e experiência no tempo e espaço.

O primeiro poema, Abismos, um dos mais belos do volume, escrito na Califórnia, é falado em primeira pessoa, em versos encadeados que simulam o ritmo da prosa, mas sem uma linearidade previsível; há referências simbólicas a mitos como os de Ícaro, Ariadne e Tristão e Isolda, relidos de forma paródica e em consonância com a experiência pessoal, sem recusar a intromissão da subjetividade (“Desconheço o abismo da paternidade, / Recusei o da troca da nacionalidade”). A confissão, aqui, não entra em choque com a função poética: lirismo e linguagem unem-se num único artefato, que não apresenta uma conclusão ao leitor, e sim uma seqüência de enigmas, como no discurso do sonho, em que a clareza é sobrepujada pela profusão de imagens e símbolos que escapam à construção do silogismo. É uma outra lógica que impera e se sobrepõe à lógica rotineira do discurso.

O tom hermético ou enigmático de muitas peças, como Febra, reveza com a ironia, a sátira e as referências mais diretas, como no poema A voz do Brasil, que se insere num dos temas recorrentes do poeta, o do amor homoerótico, ausente no cânone da literatura brasileira até há poucas décadas. Horácio Costa, em seus poemas, textos críticos e intervenções culturais, como o recente congresso da ABEH (Associação Brasileira de Estudos de Homocultura), tem militado em favor da reinclusão do tema homoerótico numa das literaturas mais homofóbicas do Ocidente, como é o caso da brasileira. Mas este poema também chama a atenção pelo grau mais evidente de coloquialidade, pelas referências urbanas, pelo vocabulário simples, recordando a primeira fase da poesia do autor, reunida no livro 28 poemas / seis contos.

Horácio Costa não é um poeta que se limita a uma única dicção ou linha de pesquisa formal: encontramos em sua obra poemas de extrema concisão, como no Livro dos Fracta; poemas longos que dialogam com Jorge de Lima, como O menino e o travesseiro; uma imagética hermética, barroquizante, como nos poemas da segunda metade de Satori; e ainda peças de uma surpreendente leveza, como A voz do Brasil. Essa diversidade atinge o próprio campo lingüístico, como nos poemas escritos em inglês ou que incorporam ao português versos e expressões de outros idiomas, numa babel voluntária. Essa miscelânea, além do efeito estético, denuncia ainda o homo viator que é Horácio Costa, cidadão do mundo que viveu nos Estados Unidos, no México e que está em constante deslocamento geográfico, trazendo para a poesia brasileira, ainda afetada por um nacionalismo provinciano, esse traço da contemporaneidade que é o universalismo: não estamos sós no planeta, e a cultura brasileira, nascida da síntese de outras culturas, é, por sua própria natureza, plural.

Pensar o Brasil para além do lugar comum, com um olhar crítico e não limitado pela anacrônica sociologia marxista, é outro aspecto que chama a atenção na poesia de Horácio Costa: a angústia do deslocamento e a revolta contra os acontecimentos da história recente (como no poema Manjar branco) acompanham a sua produção, que é um testemunho de alguém que, sendo cidadão do mundo, é profundamente brasileiro, no que essa palavra ainda guarda de bom, ou seja, a vocação para a síntese, a mescla, a miscigenação.

P.S.: Ravenala, conforme o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, designa uma planta da família das musáceas, nativa de Madagascar, também conhecida como “árvore-do-viajante”.


ABISMOS

Não me obriguem a chegar mais perto dos abismos:
Ícaro despenhou-se;
Ariadne foi abandonada em Naxos
e cantou sua desdita a um abismo;
Tristão e a pobre Isolda desceram a falésia
rumo ao barco que os levaria direto às
ondas. Os abismos
constroem destinos cruéis que atravessam séculos.
Nada cruel é o meu e que acabará comigo.
Desconheço o abismo da paternidade,
Recusei o da troca da nacionalidade,
O abismo do amor-louco esquivei.
Algum dia quiseram-me vestir de branco:
Rasguei as vestes em presença dos bem-intencionados:
Não quis ser herói de alguém
para não tornar-me abismo de muitos.
Preferi a condição pedestre, acompanhar com o olhar
A zebra que singra o asfalto antes de atravessar a rua
Ao bordereau da vida.
Ainda assim, ocorrem-me abismos
E não apenas quando sustenta alto uma nota um soprano
Ou quando arrebenta como um colar de ondas estrepitantes
O choro de um bêbê.
Falo dos abismos dos sonhos que seduzem a quem os sonha,
A esse em que abandona a alucinação que construiu ao redor
Da sua idéia de si o eu empaliçado,
E àquele que, na travessia do sonhar,
Abandono-me a quem em mim sonha persistente
E abismos sonha.
Falo das arquiteturas que não quero subir
E são-me pelos sonhos impostas,
Barcos nos quais me encontro cruzando mares ignotos
Rumo à concreção de destinos que não posso recusar
E aos quais sirvo,
De falésias que esperam não o meu olhar
Mas o meu salto:
Falo da sereia mortal que me seduz todas as noites
Enquanto durmo e a mim com o seu canto nina
E marca os minutos com um observante adejar
De sua oleosa e rebrilhante cauda,
Na espera do assalto final.

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