quarta-feira, 9 de setembro de 2009

SÓROR JUANA INÉS DE LA CRUZ






“São muitos os enigmas de sóror Juana Inés de la Cruz: os da vida e os da obra. É claro que existe uma relação entre a vida e a obra de um escritor, mas ela nunca é simples. A vida não explica inteiramente a obra e esta tampouco explica a vida. Entre uma e outra há uma zona vazia, uma fenda. Há alguma coisa que está na obra e não está na vida do autor: isso é o que se chama criação e invenção artística e literária. O poeta, o escritor, é o olmo que, sim, dá peras. (...) Para o padre Calleja, a obra da religiosa não é senão uma alegoria de sua vida espiritual; para Pfandl, é a máscara de sua neurose. De uma ou outra maneira, sua obra deixa de ser literária: o que estes dois críticos nela lêem é a transposição de sua vida. Uma vida santa para Calleja e um conflito neurótico para Pfandl. A obra transforma-se em hieróglifo da vida; na verdade, como obra, se evapora. (...) Contudo, embora nos pareça única — e assim é de fato — é evidente que a poesia de sóror Juana está relacionada com um grupo de obras, umas contemporâneas e outras vindas do passado, da Bíblia e dos Pais da Igreja até Góngora e Calderón. Eles constituem uma tradição e por isso surgem aos olhos do escritor como modelos a serem imitados ou rivais a serem igualados. O estudo da obra de sóror Juana imediatamente nos coloca em relação com outras, e estas com o ambiente intelectual e artístico de seu tempo, ou seja, com tudo isso que constitui o que se chama ‘o espírito de uma época’. O espírito e alguma coisa mais que o espírito: o gosto. Entre a vida e a obra encontramos um terceiro termo: a sociedade, a história. Sóror Juana é uma individualidade poderosa e sua obra possui inegável singularidade; ao mesmo tempo, a mulher e seus poemas, a freira e a intelectual se inserem numa sociedade: a Nova Espanha do final do século XVII.

Não pretendo explicar a literatura por meio da história. O valor das interpretações sociológicas e históricas das obras de arte é sem dúvida limitado. Ao mesmo tempo, seria absurdo fechar os olhos diante desta verdade elementar: a poesia é um produto social, histórico. Ignorar a relação entre sociedade e poesia seria um erro tão grave como ignorar a relação entre a vida do escritor e a sua obra. Mas Freud já nos prevenia: a psicanálise não pode explicar inteiramente a criação artística; e da mesma forma que existem na arte e na poesia elementos irredutíveis, que resistem à explicação psicológica e biográfica, existem elementos irredutíveis à explicação histórica e sociológica. (...) Estamos diante de realidades complementares: a vida e a obra desenvolvem-se numa dada sociedade e, assim, são inteligíveis somente dentro de sua história; por sua vez, essa história não seria aquela que é sem a vida e a obra de sóror Juana. Não basta dizer que a obra é um produto da história; é preciso acrescentar que a história também é um produto dela.”

(Octavio Paz, in Sóror Juana Inés de la Cruz: as armadilhas da fé. São Paulo: Mandarim, 1998.)

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